Educação para a paz segundo Paulo Freire
Education for Peace in Paulo Freire’ perspective
ANA MARIA ARAÚJO FREIRE (NITA)∗
RESUMO
Ana Maria Araújo Freire, com o artigo A educação para a paz, segundo Paulo Freire, quer mostrar que, para este educador, a paz está intrinsecamente associada aos processos de transformação social pelos quais se torna possível superar a violência, instaurar a justiça, promover a igualdade e o respeito à dignidade da pessoa humana como condição para a paz. Não existe paz sem educação para a paz e sua implicação de ordem ética com justiça e realização pessoal e social.
Palavras- chave: Educação para a paz; justiça social; superação da violência.
ABSTRACT
Ana Maria Araújo Freire, with the article Peace Education in Paulo Freire’ s perspec-tive, wants to show that, for this educator, peace is intrisencally associated with the processes of social transformation through which is possible to overcome violence, institute justice, promove equality and respect to human dignity as a condition for peace. There is no peace without peace education and its ethical implication.
Key-words: Peace education; social justice; overcoming violence.
INTRODUÇÃO
PAULO FREIRE afirmou nos fins dos anos 90, que em algumas circunstâncias, poderia, inclusive, a violência entrar na cena política para estabelecer o equilíbrio das sociedades em processo de transformação necessária à instauração da Paz interna. Disse isso em seu livro falado, com visível constrangimento, reafirmando sua posição anterior de superação da violência:
... Eu já tinha dito que o ideal é que as transformações radicais da sociedade - que trabalham no sentido da superação da violência - fossem feitas sem violência (...) diante do problema da violência e da democracia, eu hoje continuo pensando que a democracia não significa o desaparecimento absoluto do direito de violên-cia de quem está sendo proibido de sobreviver. E que o esforço de sobreviver às vezes ultrapassa o diálogo. Para quem está proibido de sobreviver, às vezes, a ú-nica porta é a da briga mesmo. Então eu concluiria lhe dizendo: eu faço tudo para que o gasto humano seja menor, como político e como educador. Entendo, porém, o gasto maior. Se você me perguntar: ‘entre os dois, para onde você marcha?’ Eu marcho para a diminuição do gasto humano, das vidas, por exemplo, mas entendo que elas também possam ser gastas, na medida em que você pretenda manter a vida. O próprio esforço de preservação da vida leva à perda de algumas vidas, às vezes, o que é doloroso.
Paulo admitiu a violência como uma etapa transitória, dolorosa e necessária, e o fez em nome da democracia e da justiça social, certo de que “a democracia não significa o desaparecimento absoluto do direito de violência de quem está sendo proibido de sobreviver”. Não podemos esquecer, que ele foi um homem que se compadeceu com radical solidariedade e cumplicidade com os explorados, os oprimidos e os esfarrapados, não só de seu país, mas de todo o mundo. Assim, a possibilidade da violência parte de princípios diferentes dos que partem os das guerras.
Em última instância, a posição de Paulo foi preponderante a de quem lutou pela harmonia entre os sujeitos históricos, e, pela solução dos conflitos, objetiva e prioritariamente, pelo diálogo amoroso.
Podemos constatar esta minha afirmação em sua postura pessoal transcrita em sua obra diante de sua coerência entre sentir, observar, pensar, respeitar o outro/a. De dizer a sua palavra.
Não foi por acaso nem por motivos outros, que Paulo foi indicado para o Prê-mio Nobel da Paz, em 1993. Foi por esta sua postura de coerência impregnada de generosidade, mansidão e respeito diante das diferenças étnicas, religiosas, políticas; por sua tolerância autêntica diante das diversidades de posturas e leituras de mundo culturais dos homens e mulheres no mundo; por seu comportamento de cuidado ético com as vidas; por sua luta incessante pela Paz através da sua compreensão de educação para a autonomia e libertação.
Por tudo isso foi contemplado com o “Prêmio UNESCO da Educação para a Paz”. Na ocasião, afirmou com convicção em seu pequeno discurso, em Paris, em setembro de 1986:
De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi sobretudo que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas.
Neste parágrafo tão simples quanto profundo Paulo diz de seu entendimento de Paz. Diz de sua compreensão de Paz que se antagoniza com as injustiças e tem como seu par antagônico a GUERRA. Diz se sua atitude ética que prioriza os homens e as mulheres no lugar da ética do mercado. Diz de sua perene preocupação com a formação dos homens e das mulheres numa educação, que tenha uma relação direta e dialética com a Paz. Diz de nossa responsabilidade e dever de tentar assegurar a Paz mundial e a Paz social em nossos países em torno do mundo.
Seu discurso na UNESCO é um gesto de amor, de respeito e de fé nos homens e mulheres. É o discurso de quem acreditou e alimentou os princípios da Ética da Vida. Assim, nesse seu discurso Paulo diz, sobretudo de sua crença na educação e nos seres humanos, que deve começar pela conscientização dos problemas que, nós mesmos, antieticamente instalamos na convivência social.
Diz a sua palavra com a ternura, a mansidão e a generosidade que caracterizaram sua presença pedagógica e ética no mundo. Com seu mais autêntico humanismo.eanos devemos nos perguntar para irmos ao âmago da questão, para irmos às raízes desses fenômenos da guerra e da Paz, para aprofundarmos nossas reflexões críticas, para entendermos o comportamento humano, cujas respostas, se estamos interessados num mundo melhor, penso, poderiam tomar esse caminho:
a) Que significado tem hoje a Paz? E a guerra?
Ao contrário da guerra, a PAZ nos assegura, mesmo que fugaz e transitoriamente, momentos de bem estar; de nossa esperança ontológica própria do seres humanos - “adormecida” na desesperança - voltar-se para um futuro melhor; uma ruidosa alegria, que nos mobiliza para a fraternidade e busca da felicidade - esse o destino dos humanos, mas contraditoriamente negado pela antieticidade diante da natureza e do caráter contraditório dos humanos. A Paz que tem a avidez pelo sossego e cuidado com o humano e o planeta que nos abriga. As guerras definem as diferenças injustas de riqueza e pobreza. São pré-concebidas e planejadas pela racionalidade reacionária. Os promotores das guerras se valem do medo e das fragilidades humanas e impõem o terror, o pavor e a tortura. As guerras se instauram no reino da crueldade, e são a mais verdadeira expressão da barbárie! A guerra é necrófila, vermelha como o sangue. É intolerante. Cria a desesperança.
A Guerra é plural por vocação, quer atingir e ceifar vidas em nome da morte dos adversários. Tem como intenção maior destruir o outro e a outra, e o mundo concreto construído pelas culturas sociais mais diversas através de milênios. Nega por sua natureza e essência, inclusive, a propagada ideológica da globalização da economia e do neoliberalismo: a igualdade entre os povos e as nações.
A Paz que propicia a democracia e se gera na vigência da democracia verdadeira, é congraçamento, é comemoração, é ressurreição.
A Paz é singular por natureza, atinge o mais autêntico e mais radical do ser humano, para concretizar o Ser-Mais, como queria Paulo, e por isso lutou toda a sua vida. A Paz nos faz rir e sentirmo-nos mais
gente. A Paz vem embrenhada da capacidade de dar vivência à vida democrática, socialmente a ser vivida por todos e todas sob a égide da tolerância. A Paz tem como objetivo a existência plena dos seres em geral, e mais especialmente dos seres humanos, mesmo com seus sentimentos e ações contraditórias, nutridas em nós, humanos, pelos nossos mais ancestrais traços de agressividade puramente animal. É branca como a tranqüilidade, é biófila. É a expressão maior da tolerância, da colaboração da cumplicidade entre os seres vivos, daqueles que querem viver melhor.
A GUERRA, qualquer que seja ela, atômica, bacteriológica ou armamentista, sem dúvida alguma, instaura o reino das dores, dos dissabores, das crueldades, das injustiças. Nasce dos desejos desenfreados de poder e de imperialismo. Do vilipendiamento das virtudes humanas. Estabelece a separação entre o corpo e a alma. É o retrato da violência extrema e das mortes! Da desumanização da vida dos homens e das mulheres!
b) As Guerras são inexoráveis? Por que fazemos as Guerras?
Fazemos as guerras por uma leitura de mundo distorcida que atrofia o desenvolvimento do potencial da grandeza humana.
Não. As guerras não são inexoráveis. Mas para elas não existirem, precisamos saber, conscientizarmo-nos de “que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social.”.
As guerras representam, portanto, o desvirtuamento dos valores morais. São as guerras a personificação da transgressão ética. São a figura da degradação do verdadeiro endereço ontológico humano. São a expressão das sociedades voltadas para a competição, que nega a solidariedade e a colaboração.
Fazemos as guerras por ambições incomensuráveis, por distorção de nosso caráter ético, quando deixamos ou mesmo nutrimos o ódio, a ganância e a prepotência. Fazemos as guerras impelidos pela perversidade da lógica cruel e assassina que carregamos dentro de nós vindas de nossas ancestrais origens, repito, quando
a agressividade se fazia necessária para a subsistência humana, as quais devem e precisam ser superadas.
c) Por que queremos a Paz? Por que precisamos da Paz?
Porque em nossa mais íntima e profunda humanidade existe e prevalece na maioria das pessoas do mundo o espírito da beleza e dos sonhos de construção de um mundo que ultrapassa os próprios limites humanos, exemplificados na mitologia grega de Ícaro, e, ultimamente no sonho utópico representado na Pomba da Paz, criada pela genialidade do pintor Picasso.
Precisamos da Paz por que ela nos abriga no conforto da Mãe-Terra, no útero aquecido do cuidado, da tranqüilidade, da VIDA. Precisamos da Paz por que ela garante a preservação do Planeta na sua multiculturalidade e diversidades de todas as naturezas e níveis.
d) A favor de que e de quem estão a Paz e a Guerra?
A Paz está a serviço de todos os seres do Planeta. As Guerras estão como sempre estiveram a serviço de poucos, dos donos do poder e dos que lucram com a fabricação e a distribuição dos utensílios e tecnologias de destruição das guerras. Infelizmente, as Guerras vêem sendo praticadas pelos fundamentalismos religio-sos, quer judaico, quer cristão, quer muçulmano-islamita; e pelos impérios econômicos atuais, que, sectariamente decidem os destinos não só das pessoas, mas do Planeta Terra.
e) Como obteremos a Paz? Como deve ser essa educação para a Paz?
A Paz só pode se instaurar como conseqüência de alguma educação crítico-conscientizadora, como a que Paulo propôs: “não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas.”, repetindo o que ele disse em Paris, 1986.
Fica claro que para Paulo a Paz não é um dado dado, um fato intrinsecamente humano comum a todos os povos, de quaisquer culturas. Precisamos desde a mais tenra idade formar as crianças na “Cultura da Paz”, que necessita desvelar e não esconder, com criticidade ética, as práticas sociais injustas, incentivando a colaboração, a tolerância com o diferente, o espírito de justiça e da solidariedade.
A Paz tem sua grande possibilidade de concretização através do diálogo freireano porque ele inscreveu na sua epistemologia crítica a intenção de atingi-la. O diálogo que busca o saber fazer a Paz na relação entre subjetividades.
Em suma, para Paulo “A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social.”.
Justiça social que pode se fazer com a generosidade, a amorosidade e tolerância freireana.
Sem fome, sem falta de hospital e saúde, sem falta de escolas e sem analfabetismo generalizado, sem falta de moradia e saneamento. Sem falta de comida e de entretenimento. Sem discriminações, sem elitismos, sem autoritarismo e sem a centralização.
REFERÊNCIAS
A pedagogia da libertação em Paulo Freire. São Paulo: Editora Unesp, 2001. (Série Paulo Freire)
Aprendendo com a própria história II. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 84 a 86.
Educação para a paz segundo Paulo Freire.
Porto Alegre – RS, ano XXIX, n. 2 (59), p. 387 – 393, Maio/Ago. 2006
Estas são as categorias elegidas por mim para a análise da produção do analfabetismo no Brasil. Ver meu livro Analfabetismo no Brasil, 3a. edição, São Paulo: Editora Cortez, 2001.
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