EDUCAÇÃO PARA A PAZ, EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS, FORMAÇAO DOCENTE: ENTRE APLAUSOS E
CETICISMOS
Solange
Martins Oliveira Magalhães1
RESUMO: Nos
discursos pedagógicos há uma ênfase recorrente na necessidade de
iniciação dos jovens no campo de práticas e conhecimentos
relativos aos valores coletivos vinculados à democracia, aos
direitos humanos e a Cultura de Paz. Em resposta a essa urgência
relacionamos a proposta da Educação em Direitos Humanos (EDH) e a
Educação para Paz (EP) aspirando uma educação libertadora,
cujo processo formador almeje a melhoria permanente das condições
de trabalho e, quem sabe, ajudar o professor a intervir na realidade
escolar para alterar os dados estatísticos
alarmantes em relação a violência escolar. Apresentamos
uma prática pedagógica que foi pautada no
conteúdo do Plano Nacional de EDH, articulada a Declaração
Universal de Direitos Humanos. Essa prática foi desenvolvida com
estudantes do curso de especialização em Direitos Humanos,
Instituto Dominicano de Justiça e Paz do Brasil, Comissão de
Justiça e Paz. O objetivo principal foi promover uma discussão que
ajudasse na construção e valorização de uma cultura voltada para
a paz e respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Palavras-chave:
Educação em Direitos Humanos. Educação para paz. Formação de
professores.
O campo
de estudos sobre professores(as) tem crescido quantitativa e
qualitativamente nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que os
problemas evoluem, há maior preocupação em ampliar esses estudos,
aumentando, consideravelmente, a literatura de pesquisa que tem
associado o professor a várias temáticas emergentes. Por outro lado
também é possível observarmos que esses estudos se articulam ao
debate que versa sobre as reformas educacionais implementadas no
país, sob as influências dos organismos internacionais, entendendo
que elas (as reformas) visivelmente promoveram uma nova arquitetura
para nossos sistemas de ensino e, consequentemente, para a formação
de professores.
Um marco
importante das transformações que envolveram tanto a educação
quanto a formação de professores, foram os anos 90, ou anos da
Década da Educação, quando as políticas públicas brasileiras
implementadas articulavam-se à globalização econômica, cujo
objetivo era desenvolver uma também nova atmosfera de trabalho, que
favorecesse a cultura do desempenho em resposta aos problemas
colocados pela crise do desenvolvimento do capitalismo, desde os anos
70. Neste cenário, o setor educacional foi (re)edificado, a partir
de critérios de eficiência e eficácia, em consonância com os
interesses do mercado que alicerçaram mudanças de várias ordens
nos sistemas de ensino.
Em função de sua
importância e centralidade para a adequação do projeto neoliberal
proposto, a educação passou a ser objeto de discussões, programas
e projetos levados a cabo por órgãos multilaterais de
financiamento, como as agências do Banco Mundial (BID e BIRD), e por
órgãos voltados para a cooperação técnica como o UNICEF e a
UNESCO (CURY, 2002). Esses organismos financiaram (ainda financiam) e
definiram diretrizes que orientaram as políticas e os projetos
educacionais, não só no Brasil, mas em diferentes partes do mundo.
Dentre os critérios
que fundamentam as orientações do Banco Mundial para a educação
destacaram-se: a elaboração de currículos sintonizados com as
demandas do mercado; centralidade para a educação básica, com a
redução de gastos com o ensino superior; ênfase na avaliação do
ensino em termos dos produtos da aprendizagem e do valor
custo/benefício; centralidade da formação docente em serviço em
detrimento da formação inicial; autonomia das escolas com o maior
envolvimento das famílias; desenvolvimento de políticas
compensatórias voltadas para os portadores de necessidades especiais
e para as minorias culturais (TORRES, 1996). Esses critérios
demonstraram que a qualidade da educação passou a ser uma das
preocupações centrais das políticas educacionais neoliberais,
assim como dos diferentes setores governamentais e empresariais. A
educação adquiriu importância estratégica, como condição para o
aprimoramento do processo de acumulação de riquezas e
aprofundamento do capitalismo.
Entretanto, qualidade
para o Banco Mundial, principal mentor intelectual do processo,
localizava-se no rendimento escolar do aluno, assim com no resultado
de determinados “insumos” que intervêm na escolaridade, entre os
quais se encontrava a melhoria do professor(a). As referências e as
bases para as políticas de formação de professores fizeram-se
notar pelas mudanças que propuseram principalmente no que se referia
à transformação do fazer pedagógico e seus objetivos.
No rol
das habilidades exigidas dos professores, agora concebidos como
insumos, estava manter a qualidade da educação, que passava a ser
sinônimo de eficiência, traduzida por resultados estatísticos
sobre números de matrículas, evasão, aprovação dos estudantes,
bem como, diminuição da violência escolar, aumento da paz social e
suposta defesa dos direitos humanos e sociais.
Estabeleceram-se
regras de adequação do currículo às exigências da globalização,
mediante a renovação de conteúdos, a capacitação de professores
para a mudança, a incorporação de tecnologias teleinformática e a
avaliação constante dos resultados. De uma maneira geral, se no
processo de redemocratização do Brasil intensificou-se a
preocupação com a melhoria da educação, todavia, a qualidade
deu-se nos termos apresentados.
As
forças aparentemente ocultas que definiram as políticas
educacionais, sua origem, objetivo e identidade, sempre foram
acompanhados de condicionalidades que funcionaram como verdadeiras
algemas. Os competentes, subservientes e zelosos defensores dos
interesses do capital, local e/ou internacional, em nome de uma
intervenção que deveria ser aceita e consentida, empenharam
esforços no sentido da construção e difusão de um consenso comum,
no qual o sistema educacional, logo os professores, tinha um papel
importante a desempenhar: contribuir sistematicamente para que a
população aceitasse e até defendesse as mudanças neoliberais
propostas. Portanto, não é por acaso que a maioria dos países,
passou (e passa) por reformas educacionais (GENTILLI, 1996).
Em
termos de políticas educacionais, podemos resumidamente concluir que
na década de 1970 a concepção tecnicista de educação alcançou
grande vigor no pensamento educacional, na década de 1980 essa
concepção foi criticada e rebatida, mas na década de 1990, ela
simplesmente assume nova roupagem que foi aceita e passou a definir
novamente o trabalho docente, deliberando um movimento que impôs a
escolha entre a educação “com o professor” ou “sem o
professor”, ou seja, capacitá-los ou apostar nos textos, na
televisão, na tecnologia informática (PNUD, 1999).
As
referências e as bases para as políticas de formação de
professores da época fizeram-se notar ao proporem mudanças que
visavam à transformação do fazer pedagógico, mas essas só fariam
sentido ou seriam eficientes se atuassem sobre o aluno, ou sobre seu
rendimento escolar. Tal perspectiva não deixou passar despercebida
uma “nova problemática” que se fazia presente na mesma época no
campo educacional: a questão da violência escolar e as violações
dos direitos humanos (CODO, 1999).
A
questão da violência e violação dos direitos humanos passa
acentuadamente pelo trabalho do professor, segundo Oliveira (2007, p.
356-57), as políticas publicas aumentaram as atividades e
responsabilidades para os professores, sem uma contrapartida salarial
e condições mais favoráveis de trabalho, eles se viram envolvidos
com múltiplas tarefas para as quais nem sempre tiveram um preparo
adequado no que se referem ao planejamento do projeto pedagógico e
ao relacionamento com a comunidade. Em Martinez (2003, p. 76) temos
que “o mercado de trabalho globalizado o assume [o professor] como
servidor público e o destina a uma tarefa de manutenção
institucional da matrícula escolar e controle do conflito social
crescente e ameaçador”. Estávamos na década de 80,
presenciava-se o aumento das violências nas escolas, e essa também
perpassava o trabalho docente, o professor começava a manifestar
sofrimento psíquico, aumentando as demandas por assistência e busca
de psiquiátricas e psicológicas, desmorona-se a ideia de que a
escola era um espaço que se caracterizava como um espaço protegido,
o que obrigou o aumento do debate sobre a questão da violência nas
escolas manifestando a preocupação com o que acontecia no contexto
escolar.
Desde
então, se têm buscado refinar o conceito de violência,
considerando a população alvo como os jovens, os professores, a
comunidade, e o lugar social da instituição onde a violência
ocorria: a escola (CODO, 1999). Paralelamente ao debate sobre o
professor e sua prática, as discussões sobre a violência
mostraram-se pertinente e a essa discussão somou-se o subseqüente
interesse pela implantação de uma Educação para a paz e em
direitos humanos, como possível solução para os novos problemas
enfrentados pela escola.
Guimarães
(2005) afirmou que o esforço de refletir sobre a violência no meio
escolar ligou-se, aos poucos, com a introdução da proposta de uma
Educação para a Paz e a Educação em Direitos Humanos. No
caso da Educação para a paz, o assunto começou a ser tematizado em
congressos, seminários, revistas de educação e experimentada em
algumas escolas e programas educativos, ao mesmo tempo em que era
vista com profundo ceticismo, mas, paradoxalmente, observou-se um
movimento em nível mundial que se configurou, sobretudo no século
XX, como uma campanha internacional que pretendia refletir sobre as
possibilidades ou alternativas aos novos problemas educacionais.
A
campanha internacional ligava-se sobretudo à formação de
professores assumindo o slogan: “Não há paz sem educação para a
paz”, cujos objetivos eram criar reconhecimento público e suporte
político para a introdução da educação para a paz em todas as
esferas da educação, e promover a formação de professores para
que eles pudessem, posteriormente, ensinar pela/para paz (GUIMARÃES,
2005, p.24).
A
temática passou a ser considerada no Brasil, embora se deva
reconhecer que muito gradativamente foi conquistando espaço, em
função do esforço de organizações não-governamentais, como a
UNIPAZ, que mantém a Universidade da Paz, em Brasília; pelo
Instituto Nacional de Educação Para a Paz (IMPAZ), em Salvador;
Educadores para a Paz, em Porto Alegre; o Serpaz/Movimento de
Resolução de Conflitos, em São Leopoldo – Rio Grande do Sul, a
Rede em Busca da Paz, em Santa Cruz do Sul – Rio Grande do Sul, e
hoje através da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH/PR), responsável
pela articulação interministerial e intersetorial das políticas de
promoção e proteção aos Direitos Humanos no Brasil, presenciamos
ações, estudos e programas relacionados à educação para
paz e direitos humanos.
Na
década de 90, a contribuição da UNESCO - Representação da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura também foi significativa, além de dar início, no Brasil, a
uma série de pesquisas sobre juventude, violência e cidadania
mantendo a publicação dos resultados desses estudos (PERALVA, 1997
e 1997; WAISELFISZ, 1998; SPOSITO, 1998; MINAYO, 1999), cujo objetivo
foi disseminar e ampliar os conhecimentos e o debate sobre a questão
da violência, em parceria com o Ministério da Educação, lançou-se
a Convocação Nacional pela Educação para a Paz, na mesma década.
Essa fez com que nos diversos níveis governamentais fossem
desenvolvidas diferentes iniciativas, tais como o programa federal
“Paz nas Escolas” ou, em nível municipal, o Programa de
Prevenção à Violência no Meio Escolar, ligado as Secretarias
Municipais de Educação.
A UNESCO
continuou estimulando diversas pesquisas com o objetivo de agregar
novos conhecimentos sobre os temas, a fim de subsidiar a formulação
de políticas públicas. Ainda segundo o pensamento da UNESCO,
sobretudo no que tange as temáticas violência, Educação para a
Paz e Educação em Diretos Humanos, existe uma centralidade na
formação de professores. É consenso que as reformas educativas
dependiam dos docentes, portanto os esforços deveriam ser dirigidos
para a formação do professor e para a melhoria das suas condições
de trabalho.
Diante
de tantas solicitações, uma política integral para os professores
deveria incluir medidas destinadas a formá-los para uma docência
com capacidade de maior tolerância e manejo relacional na sala de
aula. Para tanto, as reformas na formação inicial deveriam ser
destinadas a superar o fosso entre esta e as necessidades dos
múltiplos contextos. Neste sentido, as políticas deveriam ser
destinadas à atender as exigências do trabalho dos docentes, a
formação deveria ser em serviço permanente, melhoria permanente
das condições de trabalho e, quem sabe, ajudar o professor a
intervir na realidade escolar para alterar os dados estatísticos
alarmantes em relação a violência, via Educação para Paz e
Direitos Humanos (ESTÊVÃO, 2011).
Entendia-se
que a escola não estava conseguindo atuar nos dois mundos – o
pedagógico e o relacional dos alunos que residem dentro dela,
desencadeando-se uma crise da socialização no seio da escola. Se os
professores não fossem capazes de trabalhar as questões da
violência, violência escolar, educação para paz e direitos
humanos, os alunos perderiam um espaço no qual poderiam construir
uma experiência significativa sobre a aprendizagem da tolerância,
cidadania, compreensão do limites, passando a construí-la, muitas
vezes, fora da própria da escola, ou contra ela, ou dentro dela, mas
a despeito dela. O mais agravante, entendemos, é que uma experiência
significativa poderia promover os direitos humanos e a paz ou, ao
contrário, desestimulá-los (DUBET e MARTUCCELLI, 1995; ESTÊVÃO,
2011).
Educação para a Paz (EP):
entendendo conceitos
O século XX colocou
definitivamente o problema da paz para a humanidade, seja pela
densidade das experiências que testemunhou, holocausto e a bomba
atômica, seja pela efetividade do consenso que começou a operar -
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Carta da Terra, Carta
Transdisciplinaridade, fazendo com que os sujeitos se confrontassem
com os problemas centrais da civilização.
Entretanto,
mesmo com o fim da Guerra fria, como constatou Hobsbawn (1977), não
houve a instauração de um período de paz para a humanidade, nos
anos que seguiram a 1989 visualizamos várias operações militares
que manifestaram o fracasso de uma modernidade que desejava a
tolerância, frente a um cem números de guerras étnicas e
religiosas.
A
humanidade viu-se ameaçada diante de um “risco procedural”,
destruidor, que ameaçava a existência humana, frente aos movimentos
da indústria bélica, que acabaram por colocar a temática da paz
como um dos principais pontos da agenda sócio-política do final do
século XX e XXI (APEL, 1994, p. 73).
O
desmantelamento dos blocos econômicos provocou um processo de
desvelamento da realidade circundante: uma clareza da pobreza e uma
tomada de consciência da miséria dos povos. Por outro lado, a
cultura global favoreceu a percepção das necessidades mundiais, ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento de tecnologias da comunicação
possibilitou a integração e a interdependência entre os membros do
planeta ampliando o conceito de cidadania. Toma-se, assim,
consciência de que a promoção da paz e dos direitos humanos, a
resolução dos conflitos armados, a tutela das minorias étnicas e
dos imigrantes, a salvaguarda do meio ambiente, combate as epidemias,
a luta contra traficantes de droga e de armas, e contra a corrupção
político-econômica eram problemas que diziam respeito à comunidade
humana como um todo (GUIMARÃES, 2005; BENITES et al, 2011).
Conforme
o entendimento de Apel (1994, p.165-166) já se delineava um aspecto
que caracteriza uma ética da responsabilidade que mobilizava uma
fantasia moral, capaz de “universalizar o amor ao próximo, no
sentido de amor aos mais distantes”. Neste sentido, a temática da
paz emergiu não apenas como um clamor universal, mas como um campo
onde se operava certo consenso, no qual a civilização ocidental
exprimia sua idéia de bem comum. Podemos afirmar que especialmente a
partir do século XX, as ciências envidaram energias e esforços
para refletir profundamente sobre a temática da paz e seus
correlatos, da violência e da guerra (LEITE, 2010).
Como
exemplo, temos os estudos da antropóloga Mead (1901-1978) que
contribuíram para o entendimento da guerra e da violência como
construções culturais, a psicologia também trouxe importantes
elementos novos para essa compreensão coma as contribuições de
Willian James (1842-1910), considerado psicólogo para a paz, que
propôs encontrar uma moral que substituísse a da guerra. Com Freud
(1856-1939) discutiu-se o instinto de destruição e o instinto de
vida, relacionando-os ao crescimento da civilização que trabalha
simultaneamente contra a guerra.
Entre os
esforços em torno da reflexão filosófica sobre a paz, ainda
podemos destacar o alemão Max Scheler (1874-1928), em seu livro “A
idéia da paz e os pacifismos”; Maurice Blondel (1861-1949) que
publicou “A luta pela civilização e filosofia da paz”; Karl
Jaspers (1883-1969) que escreveu “Verdade, liberdade e paz”; Jose
Orteza (1883-1955) com o “Quanto ao pacifismo”; assim como:
Norbert Elias com o seu “Problema da guerra e as vias para a paz;
Agnes Heller e Ferenc Feher com “Sobre o pacifismo”; Jean-Marie
Muller com sua reflexão filosófica sobre a não-violência; Hans
Hüng com sua proposição ética planetária; Arielle Denis com
“Mundializar a paz”, obras que consagraram, depois de 1945, uma
ciência para estudar a paz, a guerra e os conflitos, denominada de
polemologia para alguns e irenologia por outros, ou, ainda, por seu
nome inglês - peace research (pesquisas sobre a paz), o que
gerou a criação de uma série de centros de pesquisa em nível
universitário e o avanço de estudos sobre a temática, sob a
perspectiva plural de diversas ciências.
Houve
uma tendência dos estudos sobre a paz se libertarem do domínio dos
estudos militares ou sobre a guerra, para ganhar autonomia e
abrangência própria. A própria problemática da paz foi sendo
circunscrita de forma abrangente, incluindo questões do psiquismo
humano, da organização socioeconômica e política e também do
plano cultural. Proliferam estudos sobre cultura de violência e
cultura de paz, estimulados, como dissemos, especialmente, pela
UNESCO.
Com
relação à Cultura de paz e sua relação à proposta de uma
Educação para a Paz, a expressão do interesse global pela temática
relacionou-se à proclamação, por parte da Assembléia das Nações
Unidas, do Ano de 2000, como Ano Internacional por uma Cultura de
Paz, conforme Resolução 52/125, de 20 de novembro de 1997; e a
nomeação da década 2001-2010, como Década Internacional para uma
Cultura de Paz e Não-Violência para as Crianças do Mundo,
Rresolução 53/25 de 10 de novembro de 1998. E ainda, o I Fórum
Social Mundial, em 2003, e o I Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade, no Convento de Arrábida, em
novembro de 1994, em Portugal, onde se formulou a Carta da
Transdisciplinaridade que apontava a necessidade de uma compreensão
planetária para enfrentar os desafios contemporâneos. Estes são
marcos importantes para a construção de caminhos para a Cultura de
Paz, e também para a implementação de uma Educação para a Paz.
Mesmo que se mostrem como sendo uma exigência indiscutível do nosso
tempo, estas propostas ainda enfrentam vários ceticismos. Em pleno
século XXI, numa sociedade mundializada como a nossa, o problema
fundamental da conservação da paz continua sendo de caráter
educativo.
Educação em Direitos Humanos (EDH)2: uma nova proposta?
Por
compreender que o problema da paz passa pela educação, nos
discursos pedagógicos continua recorrente a ênfase na necessidade
de iniciação de jovens no campo de práticas e conhecimentos
relativos aos valores coletivos vinculados à democracia e aos
direitos humanos (GOUVEIA; CARVALHO, 2011). Mas entendemos que a ação
que necessitamos propõe quando falamos em educação em direitos
humanos, não se reduz simplesmente a veiculação de um conjunto de
concepções teóricas, mas passa pelo compromisso prático a ser
traduzido no princípio fundamental de uma educação voltada para a
construção de um modo de vida que tenha na cidadania democrática
ativa e na busca pela igualdade seus objetivos maiores.
Neste
sentido, se faz necessário a reflexão sobre nossas concepções de
educação, sociedade, homem, democracia e direitos humanos, aquelas
que se estão presentes no Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos, proposto pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos –
SEDH, por exemplo, traduzem um papel teórico – de natureza
filosófica, histórica e até descritiva, assim como um conteúdo
programático, que aspiram veicular um programa de ação com
condutas guiadas por ideais valorativos que respondem nossas
exigências?
O
Governo Federal, através do Ministério de Educação e da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), lançou o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), em 10 de dezembro
de 2003, para ser um instrumento que orientasse e norteasse ações
educativas de forma pluridimensional (pública e/ou privada; formal e
não formal):
O
PNEDH entende os direitos humanos no seu sentido amplo, decorrentes
da dignidade do ser humano, abrangendo, entre outros: o direito à
vida com qualidade, à saúde, à educação, à moradia, ao lazer,
ao meio ambiente saudável, ao saneamento básico, à segurança, ao
trabalho e à diversidade cultural. Educar em direitos humanos é
fomentar processos de educação formal e não formal, de modo a
contribuir para a construção da cidadania, para o conhecimento dos
direitos fundamentais, o respeito à pluralidade e à diversidade
sexual, étnica, racial, cultural, de gênero e de crenças
religiosas (BOCK; GIANFALDONI, 2010, p. 98-99).
Parece-nos
que o PNEDH propôs programas e projetos cuja essência visava a
compreensão de uma cidadania democrática, ativa e planetária,
embasada nos princípios de liberdade, igualdade e diversidade e na
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos,
mas seu sucesso liga-se novamente, e quase invariavelmente, ao
professor(a) e a escola.
Conforme
o PNEDH o tema da educação em direitos humanos tratava das questões
referentes aos procedimentos pedagógicos, as pautas e instrumentos
que possibilitassem uma ação pedagógica libertadora. E ao se falar
em uma pedagogia libertadora, relacionamos à formação de uma nova
consciência social, à consolidação dos valores que dão sentido
ao significado do que são os direitos humanos e ao porque eles dão
sentido especial à educação dos cidadãos. Cabe também um novo
modelo de Escola que valoriza a criatividade, o sonho, o lúdico, o
prazer, a alegria, a sensibilidade, a capacidade humana de
indignar-se, de ser crítico, de duvidar.
Uma
escola que deixa de negar o diálogo, o saber dos alunos, deixa de
desumaniza, começa a viver uma realidade podendo transformá-la.
Essa é uma alternativa que nos interessa, a perspectiva de um educar
para os direitos humanos liga-se a construção de novos paradigmas
de transformação social que têm por base princípios de direitos
humanos.
Entendemos
que trata-se de uma educação dialógica, problematizadora, que
considera os alunos, os professores, que estabelece o diálogo,
reconhece o outro, que sabe que o verdadeiro conhecimento é forjado
na práxis e no debate democrático, que aceita as diferentes
experiências de vida, que faz com que os alunos possam participar
refletindo sobre a realidade e atuando sobre ela com o objetivo de
transformá-la.
A
educação proposta no PNEDH coliga-se à compreensão dos Direitos
Humanos, para compreendê-la necessitamos compreender sua
historicidade.
Direitos
humanos são aqueles direitos comuns a todos, a partir da matriz de
direito à vida, sem distinção alguma decorrente de origem
geográfica, caracteres do fenótipo (cor da pele, traços do rosto e
cabelo), da etnia, nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de
incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe
social, nível de instrução, religião, opinião política,
orientação sexual ou de qualquer tipo de julgamento moral. São
aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca de
todo ser humano (BENEVIDES, 2007, p. 337).
Costuma-se
falar, apenas por uma questão didática, dividir estes direitos -
direitos civis, direitos políticos, e os direitos coletivos da
humanidade, em três gerações de direitos humanos, mas não
se trata de gerações no sentido biológico, do que nasce, cresce e
morre, mas no sentido histórico, de uma complementaridade, que pode
também ser entendida como uma dimensão (ESTÊVÃO, 2011).
Resumidamente,
a primeira geração é contemporânea das revoluções
burguesas do final do século 18 e de todo o século 19, representa
os direitos civis e das liberdades individuais, liberdades
consagradas pelo liberalismo, quando o direito do cidadão dirige-se
contra a opressão do Estado ou de poderes arbitrários, contra as
perseguições políticas e religiosas, a liberdade de viver sem
medo. Os direitos da primeira geração dizem respeito ao direito à
vida, à segurança, à intimidade, à propriedade, à manifestação,
à opção religiosa e a liberdades civis que implicam a obrigação
do Estado no respeito à pessoa humana e a garantia de seus direitos
(CASSESE, 1991). A segunda geração, que não abrange apenas
os indivíduos, mas os grupos sociais, surge no início do século 20
na esteira das lutas operárias e do pensamento socialista na Europa
Ocidental, explicitando-se, na prática, nas experiências da
social-democracia, para consolidar-se, ao longo do século, nas
formas do Estado do Bem Estar Social. Refere-se ao conjunto dos
direitos sociais, econômicos e culturais, como os de caráter
trabalhista e os de caráter social mais geral, como saúde,
educação, habitação, acesso aos bens culturais. A terceira
geração inclui os direitos coletivos da humanidade, como
direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos,
ao patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao
meio ambiente ecologicamente preservado; são os direitos ditos de
solidariedade (BENEVIDES, 2000; CARVALHO, 2004).
A
terceira geração de direitos humanos solicita a Educação em
Direitos Humanos para consolidar seus objetivos. Em complemento às
duas gerações, e os direitos coletivos da humanidade, tais como o
direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos,
aos patrimônios científico, tecnológico e cultural da humanidade e
ao meio ambiente ecologicamente preservado.
A
Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que o período de 1º
de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2004 constituiria a Década
das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos. No
documento apresentado, a educação em direitos humanos
(...)
objetiva a construção de uma cultura universal de direitos humanos
através da partilha de conhecimento (...) direcionados ao
fortalecimento do respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais; ao desenvolvimento completo da personalidade humana e
de seu senso de dignidade; à promoção da compreensão, tolerância,
igualdade entre os sexos e amizade entre todas as nações, pessoas e
grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e lingüísticos; à
capacitação de todas as pessoas a participar efetivamente de uma
sociedade livre; à ampliação de atividades das Nações Unidas
para a manutenção da paz (MAIA, 2007, p. 85)
Conforme
Benevides (2000, p.12), a Educação em Direitos Humanos mostra-se
essencialmente para a formação de uma cultura de respeito à
dignidade humana, entende-se que ela pode ajudar a promover a
vivência dos “valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da
solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz”. Portanto,
os professores, de uma maneira em geral, foram convidados a
incorporar aos currículos os objetivos de uma educação em direitos
humanos.
No
âmbito nacional, além da Constituição Federal de 1988, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação também refletem esse propósito ao
dispor sobre os princípios e fins da educação nacional. No Art. 2º
da nossa constituição temos que: A educação, dever da família e
do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. Por este ângulo, a Educação em
Direitos Humanos (EDH) é legitimada, cabe a ela ajudar na formação
de uma cultura de respeito à dignidade humana, através da promoção
e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade,
da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz.
No âmbito internacional, a educação passou a ser entendida como um
direito humano reconhecido através do Art. 13 do Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3
que afirma:
Os
Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a
pessoa à educação. Concordam que a educação
deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do
sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do
homem e das liberdades fundamentais. Concordam
também que a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar
um papel útil numa sociedade livre, promover compreensão,
tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais,
étnicos e religiosos, e favorecer as atividades das Nações Unidas
para a conservação da paz (BRASIL, 1992).
Na perspectiva da EDH, e
do PNEDH, o acesso à Educação deve ser compreendido como condição
para a realização dos direitos humanos, ou seja, passa ser a base
constitutiva da defesa e constituição dos direitos econômicos,
sociais e culturais. Pois bem, por meio da educação o homem pode
viver a plenitude de todos os direitos humanos. Entretanto, mesmo que
estejamos entre limites e as possibilidades do exercício da
cidadania no contexto da globalização, a proposta de uma Educação
em, para e pelos Direitos Humanos ainda encontra-se entre aplausos e
ceticismos.
Educação para Paz e a formação
docente: uma experiência pedagógica com o estudo dos direitos
humanos
O
ceticismo sobre a importância de uma educação em direitos humanos
sempre foi claro, também incide no campo da formação de
professores. superá-lo significa encarar alguns problemas que
surgem, não raramente, em função das aflições e expectativas
vividas pelos próprios professores, geradas pela urgência da
solução de problemas bastante concretos e complexos, por vezes
sequer solucionáveis no âmbito da escola, cujos efeitos,
seguramente, repercutem de forma profunda no trabalho docente.
Assim
compreendendo, sem a pretensão de apresentar conclusões, tecemos
algumas considerações após desenvolvemos algumas práticas
pedagógicas que procuraram implementar a EDH, com vistas a promoção
da Cultura de Paz. Essas foram desenvolvidas com um grupo de 50
estudantes, na disciplina Educação e Solidariedade, no Curso de
Especialização em Educação e Direitos Humanos, do Instituto
Dominicano de Justiça e Paz do Brasil Antônio Montesino.
Os dados
que aqui apresentamos compõem ampla pesquisa sobre os referenciais
teóricos e o conteúdo programático do PNEDH (2008). Nesta pesquisa
utilizamos a metodologia qualitativa e os princípios do estudo de
casos. Na atividade utilizou-se os recursos das Oficinas Pedagógicas
de Direitos Humanos de Candau (1995).
No
planejamento da atividade tomou-se como referência a ementa oficial
da disciplina, a partir da qual foram propostas estratégias
valendo-se de discussões com os alunos sobre o percurso das
atividades. A disciplina aborda temas relacionados à sociedade, a
educação, sua historicidade, bem como temáticas sobre a Educação
em Direitos Humanos (EDH), Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (PNEDH, 2008), Declaração Universal de Diretos Humanos, e
suas possibilidades transformadoras do contexto educacional. A
reflexão sobre os direitos humanos e o PNEDH mostrou-se frutífera e
relevante para a formação docente.
Após
leitura de material teórico, foi proposto ao grupo a realização de
discussões ampliadas sobre: efetivação dos direitos humanos no
país, direitos humanos e sua relação com preconceitos, racismo,
gênero, violência e educação, permitindo perspectivas interativas
entre os campos disciplinares, além de revisão e suprimento de
eventuais temas a serem abordados. Desta forma, oportunizou-se aos
alunos estabelecerem interações e atualizações de seus
conhecimentos no campo dos direitos humanos, articulando-os à
formação docente e às áreas afins. O processo exigiu diálogo,
uma dinâmica aberta, fundada na solidariedade, no questionamento
constante e nas reflexões sobre as ações desenvolvidas no/com/fora
do grupo.
Na
dinâmica procurou-se levar em consideração a pluralidade dos
participantes, retratando a possibilidade metodológica integradora
proposta pelo Projeto do curso, no qual a formação é concebida
como processo de inserção crítica dos sujeitos no universo da
cultura, do pensamento, da autonomia, da liberdade, da justiça, da
democracia e da solidariedade.
A
atividade apresentada pautou-se na leitura e análise de texto
retirado do livro Educar para a conexão (SILVA, 2004). Foram dadas
as seguintes orientações: leitura, análise e discussão em grupos
do texto “carta 23”, encontrada nos muros de um campo de
concentração na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. Para
Silva (2004), ela foi escrita por alguém que sofreu com a falta de
conexão entre os seres humanos. Vejamos o texto:
Prezado
Professor: Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos
viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas
por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos
diplomados, recém nascidos mortos por enfermeiras treinadas,
mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e
Universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu
pedido é: ajude seus alunos a tornarem- se humanos. Seus esforços
nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis
(SILVA, 2004, p. 87).
Iniciou-se incentivando debate
acerca do conteúdo da carta, suscitando-se a reflexão sobre a
vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos,
debateu-se no grande grupo, depois o assunto foi debatido novamente
em grupos menores e as conclusões a que os pequenos grupos chegaram,
foram apresentadas em formas de oficinas pedagógicas de direitos
humanos, como proposto por Candau (1995), associadas aos
artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos - DUDH4.
A metodologia utilizada teve o
objetivo de maximizar a aprendizagem sobre a temática ao trabalhar
com atividades que mobilizam, conjuntamente, as várias dimensões
humanas (mentais, emocionais, sensíveis, corporais, criativas),
tecendo relações tanto horizontais como verticais do conhecimento.
Foram criadas situações de reflexão,
capazes de maior envolvimento dos sujeitos na construção de
significados. Afirmamos isso, pois, ao optar por uma oficina
específica – teatral, musical, cordel, dança e poesia, cada grupo
de estudantes esforçou-se para sua realização, tornando o trabalho
criativo e prazeroso.
As
oficinas, além de apresentarem as reflexões desenvolvidas com a
leitura da carta 23, ao serem associadas aos artigos da DUDH,
com o apoio nas artes, possibilitaram trabalhar as dimensões
estética, corporal, sensível, como uma forma de despertar a
sensibilidade e afetividade entre os sujeitos. Estes foram capazes de
trabalhar produtivamente em grupo, refletindo criticamente sobre o
material proposto, sobre a sua própria prática e suas ações.
Após as
apresentações das oficinas, houve uma plenária geral, na qual os
estudantes relataram:
Nunca
havia percebido a dor do outro, a oficina
teatro me colocou
neste lugar. Faltam-me palavras para expressar a angústia que nos
invade o peito diante da expressão de tanta dor [...]. Talvez as
palavras não dêem conta de expressar nossa tristeza e indignação!
(sujeito 4).
[...]
é inconcebível que essas coisas aconteçam em qualquer sociedade.
As pessoas têm dificuldade em lidar com o melhor do ser humano que é
ser um “ser humano” [...] precisamos militar em prol dos direitos
humanos sempre. Talvez a Educação em Direitos Humanos ajude em
curto prazo [...] (sujeito 45).
Segundo
Demo (1999), uma aprendizagem significativa acontece quando os
estudantes reconstroem o conhecimento com qualidade formal e
política, o que o leva à emancipação e à conquista de sua
autonomia pessoal e profissional. A atividade em si, leitura, análise
e discussão do conteúdo, mais a elaboração das oficinas, parece
ter promovido a capacidade de perceber as consequências pessoais e
sociais das escolhas, além da imperiosa necessidade de se
desenvolver o senso de responsabilidade social e coletiva.
Após
a oficina de canto, na qual o grupo escolheu a música “vida de
gado” do Zé Ramalho, percebo que estamos patinando no vício do
ruim, patinamos na idéia da possibilidade de uma desconstrução do
sistema, mas nos adequamos. Será comodismo? Porque não instituímos
o PNEDH? A sociedade não seria melhor? (sujeito 3).
A
complexidade e a abrangência da tarefa formadora, potencialmente
transformadora, implica colaborar para que novas reflexões sejam
propostas para os sujeitos, acionando sua capacidade
autoquestionadora e reflexiva.
Com base
nesse entendimento, é objetivo da EDH, assim como da Educação para
Paz, a formação de sujeitos capazes de julgar, escolher, tomar
decisões, cidadãos responsáveis e prontos para exigir que não
apenas seus direitos, mas também que os direitos dos outros sejam
respeitados e cumpridos.
Devemos
ser militantes em prol dos Direitos Humanos, pois precisamos
de experiências de conciliação, cooperativas e solidárias.
Experiências pautadas no princípio ético, acima dos interesses
pessoais, próximas do bem comum e da manutenção da vida [...]
(sujeito 17).
Paulo
Freire estava certo: o trabalho de educação é antes de tudo um ato
de amor, presente em cada palavra, em cada gesto, em cada realização.
EDH pode ter essa expressão [...] (sujeito 19).
Os
alunos revelaram como estava interessante e agradável a apresentação
das oficinas, em função da turma ter realizado algo novo e
diferente, agregaram conhecimentos a partir da suas experiências de
vida, além de sentiram-se livres e motivados na atividade de
elaborar e comunicar suas reflexões associadas aos direitos humanos.
Eles assim relataram:
[...]
com esta atividade fui tocado no meu ponto fraco, adoro dança,
participar da oficina de dança foi ótimo. Minha oficina associou
dança, beleza e leveza com a solidariedade. Aprendi que
poderíamos através do corpo ressignificar as coisas fazendo com que
a vida tenha mais sentido, prazer e dignidade [...]
(sujeito 4).
[...]
nunca me imaginei trabalhando o corpo. Nunca trabalhei o corpo dos
meus alunos. Achei fantástica a oficina. Aprendi que quem educa,
educa o corpo do outro [...] adorei, mas ver os colegas se esforçando
na elaboração das oficinas, foi o melhor, aprendi muito e
desenvolvi o desejo de superar minhas dificuldades, assim como
promover esse entendimento em meus alunos. Gostaria de torná-los
sensíveis a vida [...] (sujeito 40).
É
importante destacar os movimentos de resistências que foram
trabalhados através do diálogo e de negociações. Analisamos que
as resistências enfrentadas durante o processo serviram para
ressignificar o aprender a conviver. Percebemos a construção de um
pensar mobilizador, inclusive de emoções e da corporeidade dos
sujeitos, conforme depoimento a seguir:
Precisamos
de parâmetros que possam nos auxiliar, tanto a elaboração de
políticas públicas mais consistentes que sejam capazes de gerar
práticas sociais que impeçam essas posturas apresentadas na carta
23, e que gere ações mais comprometidas com a responsabilidade
social [...], Se
somos seres reflexivos, criativos, afetivos e sensíveis o suficiente
para apresentar em forma de oficinas o que elaboramos em nosso
interior, também o somos para implementar novas formas de ser no
mundo, de entender a condição humana [...]
(sujeito 31).
A
atividade pedagógica também modificou a tradição da sala de aula
constantemente baseada no baixo nível de participação dos alunos.
Mudou a ênfase das atividades solitárias ao promover as bases da
comunicação livre e plural. Podemos observar que a autonomia é
inerente à reflexão e consequente auto-organização dos sujeitos.
Entendemos que atividade mostrou-se significativa, formativa e
transformadora.
Algumas considerações
Em
última análise, em que pese os aplausos ou o ceticismo em relação
à proposta de uma EP ou a EDH, sobretudo no âmbito da formação de
professores, a experiência nos obriga refletir sobre algumas
dificuldades, a primeira liga-se a superação de expectativas de que
um novo plano garanta o êxito da ação educativa, que seja, uma
proposta messiânica que resolver todos os problemas da escola. A
implantação dos planos dependem do professor (mas não só), de sua
prática acadêmica que está condicionada pelas circunstâncias
históricas que marcam a sociedade da qual ele faz parte. Depende da
sua capacidade de ação e a reflexão sobre a realidade vinculadas
ao conhecimento, à consciência dessa realidade e à possibilidade
de transformá-la.
Superando-se
a ideia de que a melhoria do ensino depende apenas do professor,
embora envolva sempre um processo de autoformação, de compromisso e
motivação, reconhecemos que abrange também envolvimento
institucional e, neste sentido, o sucesso um novo plano, como PNEDH
ou de uma Educação para a Paz, não dependerá simplesmente de
qualidades individuais de professores, mas delas e de características
da cultura institucional, de formas de intervenção na organização
institucional e difusão de conceitos e novos valores que inspirem
reflexão critica capaz de gerar práxis e, portanto, transformação.
Ainda
parece-nos necessário a superação de discursos politicamente
corretos, o contato com novas propostas geram lições bem decoradas,
mas tão distanciadas do conhecimento que dá autoridade para a
construção de uma nova realidade. A experiência vivida, como
aquela nas oficinas em Direitos Humanos, geraram discussões
teóricas, e parecem ter ajudado os alunos a superarem a incorporação
mecânica de valores, ao contrário, percebemos a reflexão e a troca
de experiências de vida. Dessa forma, como as oficinas trouxeram
conteúdos propostos pelos alunos, foi possível aliar uma formação
teórica e conceitual à discussão de formas de intervenção
prática concebidas aos problemas cotidianos. Gera-se uma metodologia
pautada em valores éticos, buscando-se diferentes soluções
práticas para problemas específicos no campo educacional, que
resultassem no respeito à autonomia do trabalho docente.
A
abertura para um trabalho conjunto vivenciado pelo grupo foi um
aspecto muito positivo, necessita ser amplamente incentivada nos
contextos formativos. Fica cada vez mais patente a necessidade de que
a formação de professores integre de forma crescente aportes como
as propostas do PNEDH e da EP, sua prática na formação de
professores parece repercutir positivamente na construção de uma
nova ética, uma nova consciência social, solidária, que se traduza
em práticas sócio-políticas transformadoras, reforçando e
ampliando princípios humanistas e posturas democráticas que
consolidem os espaços de liberdade, de tolerância, e isso é
atualmente muito desejável.
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1
Doutora em Educação, Psicóloga, Professora dos cursos de
Licenciaturas e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Goiás. E-mail
solufg@hotmail.com
2
Programa Nacional de Direitos Humanos, disponível na Internet em:
http://www.mj.gov.br/sedh/ct/spddh/pnedh.pdf
acesso setembro de 2011.
3Disponível
em
http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20Econ%C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf
acesso em 10 de setembro de 2011.
4
A Declaração Universal de Direitos Humanos pode ser encontrada na
Internet em:
http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
___________________________________________________________________________
Os
Diferentes Olhares sobre Cultura da Paz: pesquisas e epistemologias
Nadia Maria Bádue Freire
Resumo:
O artigo apresenta o conceito de paz e sua universalidade, bem como
estudos e pesquisas que vêm sendo desenvolvidos no sentido de se
encontrarem caminhos mais seguros, em que se possa agir com maior
coerência no domínio de se educar para a paz. Tem como objetivo
refletir sobre as relações entre pesquisas desenvolvidas sobre a
Educação para a Paz, a Cultura de Paz, a Educação para a Paz em
Paulo Freire, os estudos desenvolvidos pelo Geepaz (Grupo de Estudos
“Educação para a Paz e Tolerância”, do Laboratório de
Psicologia Genética da Faculdade de Educação/UNICAMP), enquanto
resultado da tese de doutorado de Nadia Freire (2004) sobre a
Educação para a Paz segundo a psicologia genética de Jean Piaget.
Os resultados apontam que embora Paulo Freire relacione a Educação
para a Paz a uma dimensão de emancipação, onde a injustiça social
não pode ser tolerada, ao mesmo tempo, aponta a tolerância como
valor que emancipa. Ao esclarecer o conceito da tolerância
necessária à Educação para a Paz freireana, o artigo se pauta na
questão da justiça social e abre possibilidades de articulação da
Educação para a Paz fundamentada na epistemologia
desenvolvimentista de Piaget, segundo a qual a paz e a tolerância
não são dadas pelo mero ensino verbal, mas vão sendo constituídas
ao longo de reflexões sobre temas e sobre experiências em que ambas
são ou foram colocadas em jogo. A Educação para a paz verdadeira
torna claras as buscas pela verdade, pela justiça social que
emancipa e pela compreensão do outro que aproxima, mas não permite
a permissividade que torna opaca a ideia da tolerância manifesta
como virtude da paz.
Palavras-chave:
Educação para a Paz. Justiça Social. Tolerância. Psicologia
Genética. Educação emancipadora. Desenvolvimento Humano.
A Educação para a Paz é um saber necessário ao desenvolvimento
humano e social e tornou-se, nos últimos tempos, uma preocupação
não apenas dos educadores formais, ligados à escola, mas de toda
pessoa que participa efetivamente das ações e das reflexões com
objetivo de desenvolvimento humano.
Desta forma, estudos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos no sentido
de se encontrarem caminhos mais seguros, em que se possa agir com
maior coerência no domínio de se educar para a paz. O objetivo do
presente artigo é refletir sobre o próprio conceito de paz, bem
como apresentar algumas das pesquisas desenvolvidas sobre a Cultura
de Paz, a Educação para a Paz em Paulo Freire e sobre os estudos
desenvolvidos pelo Grupo de Estudos “Educação para a Paz e
Tolerância” (GEEPAZ), criado a partir dos resultados da tese de
doutorado de Nadia M. B. Freire
(2004) sobre a Educação para a Paz segundo a psicologia genética
de Jean Piaget.
Como o tema do presente artigo
aborda a questão epistemológica, cabe lembrar que os trabalhos do
LPG (Laboratório de Psicologia Genética) fundamentam-se na
Epistemologia Genética de Jean Piaget – que vê a epistemologia
como uma disciplina autônoma que explica, analisa como
ocorre o conhecimento científico – sendo que a explicação da
Epistemologia Genética criada por Jean Piaget apoia-se nas
explicações dos sistemas biológicos.
Se considerarmos a epistemologia
como ramo da filosofia, que tem como um dos pilares a universalidade,
pode-se afirmar que diferentes epistemologias, cada uma tendo por
base seus fundamentos – explicam, cada uma de acordo com seus
pressupostos filosóficos, a Educação para a Paz – por ter a paz
um caráter universal: afinal, todas as pessoas e todas as nações
desejam paz, que é necessária à sobrevivência da espécie humana
e do próprio planeta.
Neste artigo, vamos ver a
epistemologia genética piagetiana que surgiu em oposição ao
empirismo fundado unicamente na observação fenomênica. Para
Piaget, o conhecimento científico não é produto apenas da
observação, mas é um processo evolutivo em espiral, construído
nas trocas entre o meio interno e externo, por meio dos processos de
assimilação, acomodação, adaptação, reequilibração.
O conceito de paz aqui considerado relaciona-se ao conceito de
tolerância, ambos em seu sentido de universalidade (por serem
necessárias à sobrevivência da espécie humana), de móbeis de
conduta nas relações internacionais e interpessoais, que vê a paz
como permeando a vida, em meio a situações de conflito e violência.
Acreditar que a paz desejável repousa na ausência de conflitos é
negar o valor da paz, pois tal ausência é utópica e faz da
Educação para a Paz também uma outra utopia, desta vez pedagógica,
cujo mal à educação pode ser enorme.
Embora o termo paz no dicionário Houaiss (2004, p. 2158)
designe “ausência de problemas, de violência” ou “nação que
não está em guerra”, neste artigo reafirmamos nossa ideia de
Educação para a Paz: é um processo dinâmico que busca resolver os
conflitos tendo como fundamento a defesa e a proteção de valores
como justiça, liberdade, o que por si só já se torna inspirador de
atitudes e de reações sem violência.
A tolerância relacionada à Educação para a Paz nega a
permissividade, a subserviência e ensina a indignar-se diante da
exclusão tomando atitudes não violentas que possibilitem a
emancipação social. Nessa seara, estão os estudos sobre psicologia
moral, incluindo-se a educação em valores, a educação dos
sentimentos, a linguagem do professor, a construção do ambiente
democrático, a discussão sobre o ensino verbal de valores, o ensino
transversal, com fundamentos na Psicologia Genética – bem como o
conceito freireano que se aproxima da realidade nacional e clama por
justiça social. Aliás, Sáez (2004), já anunciou, em suas belas
“Dez Propostas para uma Pedagogia da Paz” que educar para a paz é
educar para o conflito. No mesmo texto, expõe o conceito de paz:
Nossa concepção de paz não se
refere a uma situação estática de não guerra ou não violência
explícita, mas a um processo dinâmico que busca os maiores níveis
de justiça e liberdade, tanto para as pessoas individualmente quanto
para as sociedades e culturas nas quais nós, os seres humanos,
vivemos: a paz não é a ausência de guerra, e sim a presença de
justiça.
Mais recentemente, pesquisas desenvolvidas na perspectiva da Educação
para a Paz apontam resultados que impulsionam outros pesquisadores a
continuarem seus estudos. Dentre eles, citamos:
1998: Educação para a Paz, Cooperação e capacidade de se colocar
no lugar do outro, desenvolvida com alunos do curso de Odontologia,
por Nádia Maria Bádue Freire.
2000: Tolerância e seus limites: um olhar latino-americano sobre a
diversidade e desigualdade, por Clodoaldo Meneghello Cardoso, UNESP.
2003: A Educação para a Paz na crise metafísica: sentidos, tensões
e dilemas, por Padre Marcelo Rezende Guimarães, da PUC do RS.
2004: Educação para a Paz: um estudo psicogenético sobre a
tolerância, por Nádia Maria Bádue Freire, Unicamp.
2011: A construção da paz como meta do processo educativo,
por Lucia Helena de Carvalho, Unicamp.
Além das citadas, desde 2005, a partir de sua criação, o Geepaz
vem desenvolvendo estudos e pesquisas sobre Educação para a Paz e
Tolerância na perspectiva da epistemologia genética evolutiva, com
o método dialético piagetiano, tais como Inclusão Social,
Desarmamento, Estudos de Caso, que considerando o conflito enquanto
fonte de desequilíbrio e decorrente reequilibração, promove
desenvolvimento. O Geepaz tem como coordenadora a professora Dra.
Nádia Maria Bádue Freire, e como presidente, a professora Dra. Orly
Zucatto Mantovani de Assis. Hoje, nas pesquisas divulgadas pela
UNESCO, dimensiona-se e se documenta, com ênfase em relatos de
jovens, seus familiares, membros das comunidades em que eles e elas
vivem e da escola, situações de exclusões socioeconômicas e de
violências. Quanto ao desemprego, à exclusão social, à violência
e à intolerância, a UNESCO mostra que a violência tende, por sua
extensão e constância, a ser banalizada, a constituir-se em parte
de nossos tempos. Tais pesquisas indicam que existe atualmente no
Brasil, um grande número de jovens entre 15 a 24 anos, que são
vítimas ou que estão envolvidos em casos diversos de violência e
que enfrentam dificuldades específicas para obter trabalho - a
questão da experiência e o primeiro emprego - e que se encontra em
situação de risco social e pobreza. São jovens que vivem, em seu
cotidiano, os efeitos da exclusão social que se traduz também por
exclusão quanto ao acesso à cultura, ao lazer, ao esporte, pela não
disponibilidade, em suas comunidades, de equipamentos de diversão e
de cultivo artístico-cultural. Talentos são abortados, gerando
frustrações e o empobrecimento cultural da nação. Valores que
reproduzem violências, discriminações e intolerâncias envolvem,
por outro lado, os jovens em um círculo perverso em que eles
próprios passam em muitos casos, a serem agentes de uma cultura que banaliza
vulgaridades, violências, discriminações contra as mulheres, os
negros, os índios, os pobres e compactuam com autoritarismos.
Instituições
governamentais e diversas entidades da sociedade civil vêm lidando
com tais situações por meio de propostas criativas, construindo-se
espaços alternativos de estimulo à criatividade, à participação,
à autoestima, à formação artística e cultural, promovendo
formação em temas de cidadania, oferecendo alternativas de ocupação
do tempo e contribuindo para uma massa crítica à cultura e às
práticas de violência. Em muitas dessas experiências se resgatam
sentidos de direitos humanos, facilitando meios de expressão e de
verbalização, pelos jovens, dos sentimentos de indignação,
protesto e afirmação positiva de suas identidades, no sentido
emancipatório. Além disso, utilizando o poder agregador do lúdico,
seja na forma de arte, esporte ou cultura, investe-se em outra forma
de sociabilidade entre os jovens e entre gerações, evitando o
isolamento social dos jovens e estigmas sociais contra culturas
juvenis.
Também as universidades têm se destacado em estudos e pesquisas
sobre o desenvolvimento moral e afetivo, além do intelectual das
crianças, com vistas à Educação para a Paz.
Pesquisa de N.M.B. Freire (2004) sobre Educação para a Paz na
perspectiva psicogenética mostra que a paz é construída e que é
produto de “saber resolver os conflitos por meios não violentos”,
sendo que o “saber conversar” foi a categoria de maior relevância
nos resultados obtidos na pesquisa. A análise de como ocorrem “as
conversas” apontadas demonstra que o “saber conversar” está
relacionado às fases do desenvolvimento dos sujeitos da pesquisa
diante das respostas apresentadas pelos sujeitos da pesquisa sobre “o
que é mais certo fazer diante de determinada situação de violência
(roubo, agressão do mais forte em relação ao mais fraco, mentira,
humilhação, exclusão social)”. Desta forma, crianças pequenas,
heterônomas, pré-operatórias, acham que diante de alguma
violência, o mais certo é conversar, mas essa conversa é
ainda produto de aprendizagem social a partir da convivência com
pais e professores que ensinam que, diante de um conflito, “bater
não pode, tem que conversar”. Devido à sua condição
pré-operatória, as crianças pequenas não conseguem justificar o
motivo pelo qual “conversar” é a atitude mais correta. Já os
maiores, na semi-autonomia moral (entre 9 e 11 anos de idade),
argumentam que o mais certo, diante de alguma violência, é o
professor (ou o pai, ou a mãe) conversar com o agressor e
essa conversa gira em torno de passar lições de moral; os mais
velhos, entre 11 e 15 anos, afirmam que conversar é o mais
certo porque assim podem se explicar, se entender e acreditam que, se
necessário, deve-se segurar coercitivamente o agressor para
impedi-lo de continuar agredindo, mas para defender a vítima e não
para vingar-se do agressor. As respostas demonstram que existe uma
relação direta entre os tipos de conversas apontadas e o
desenvolvimento moral dos sujeitos participantes da pesquisa.
Tal desenvolvimento é provocado pelas trocas sociais que ocorrem em
ambiente de respeito mútuo e cooperação, por oposição a ambiente
coercitivo, de respeito unilateral.
Mesmo hoje, apesar de estudos e de experiências exitosas nesse
campo, ainda parece haver uma mística em torno da Educação para a
Paz, que a torna, para alguns, uma utopia, portanto, inatingível
(daí associada à ideia da “miopização” das pessoas
envolvidas) já que o discurso da Educação para a Paz nem sempre é
interpretado em sua objetividade e amplitude; por isso, é
considerado algumas vezes como ferramenta que não transforma, não
emancipa - e que ajuda a perpetuar a injustiça social, as
desigualdades, a intolerância e a própria permissividade. Daí a
importância de vermos, ao lado das epistemologias, as ideias de
Paulo Freire sobre a Educação para a Paz, bem como as inspiradas em
Jean Piaget, em seu artigo de 1934: “É possível uma Educação
para a Paz?”
Iniciemos com o fato de ser a Educação para a Paz, principalmente
após as duas Guerras Mundiais, um valor universal no sentido que é
uma virtude desejável por todos, por todas as nações, já que é
condição para a manutenção da própria vida. Mesmo aqueles que
colocam a liberdade acima da vida, ou a luta por seus ideais, por sua
cultura, acima da vida – desejam viver em paz.
Para
ilustrar essa ideia, um exemplo é o Prêmio Nobel da Paz dado a cada
ano a representantes de nações de diferentes posições políticas
e ideológicas. O que une essas pessoas é o trabalho comum em prol
da Paz, sua intenção e suas ações. Ao todo, foram 124 prêmios,
sendo que o primeiro foi no ano de 1901, ao fundador da Cruz
Vermelha, Jean Henri Dunant (Suíça). O
CICV (Comitê Internacinal da Cruz Vermelha) afirma manter caráter
neutro e independente, pois apenas sendo livre para atuar de forma
independente em relação a qualquer governo ou a qualquer outra
autoridade, tem condições para atender aos interesses das vítimas
dos conflitos, que constituem o centro da sua missão humanitária.
Portanto, a
aspiração pela paz não é desta ou daquela ideologia. É uma
necessidade que deve permear toda organização humana.
Para que, na escola, haja coerência com os princípios aqui
observados, as relações devem estar revestidas de respeito mútuo,
de reciprocidade, de democracia e de justiça social. Se na
democracia há a participação de muitos, incluindo-se supervisores,
direção, coordenação, pessoal técnico, professores,
funcionários, pais, comunidade em que a escola está inserida, bem
como os responsáveis, em níveis municipal, estadual e nacional –
a busca pela justiça social está pautada no equilíbrio dos valores
da dignidade humana. Todos se tornam responsáveis pela construção
da cidadania. Deixou-se de lado a ideia de que apenas são
responsáveis pela Educação das crianças e dos jovens, as
autoridades escolares. Embora a própria legislação educacional
aponte que Educação é dever do Estado e da família, podemos dizer
que vivemos um momento de busca de uma responsabilidade difusa, em
que outras instâncias se debruçam sobre o tema em Conferências,
Encontros e Congressos em que são criadas oportunidades para amplos
debates, exposições de experiências, busca de novas alternativas
de trabalho, são elaboradas Cartas e Declarações sobre os mais
variados temas, principalmente no combate à violência. Trata-se,
portanto, de uma visão sistêmica da educação, em que as redes
envolvidas se mantêm, mas inter-relacionadas de tal forma que quando
uma entra em crise, todas as outras sofrem as consequências. Há
necessidade, portanto, na democracia em que desejamos viver, de que
as escolhas se tornem mais e mais responsáveis. Tudo o que acontece
no global interfere diretamente no local, no individual.
Sabemos que existem muitos participantes que se colocam contra a
ideia de que outros setores intervenham no setor educacional público,
argumentando que é função do Estado e que tal ingerência pode
fazer com que o público se acomode ainda mais e que os prejuízos
sejam ainda maiores. Suas exigências são, por exemplo, que o setor
público contrate mais professores e técnicos, criando empregos que
diminuam as falhas educacionais – e não que sejam sanadas por
programas que, por serem “jogados” de forma autoritária, sem um
planejamento de implementação e debates, acabam por não atingirem
seus objetivos e além de falharem quanto à Educação para a Paz,
banalizam-na e “miopizam” os envolvidos com seu belo discurso e
apenas perpetuam as injustiças, as desigualdades.
Embora tais discussões devam ser travadas e sejam necessárias para
o desenvolvimento da democracia – é bem verdade que as escolas em
que os pais e a comunidade participam estão sendo mais valorizadas,
melhor cuidadas, menos depredadas, menos violentadas. Inclusive, os
que defendem essa ideia, ressaltam que antes de cada ação haja um
preparo, reuniões em que as pessoas falem, digam o que pensam,
discutam, contribuam, debatam, enfim participem democraticamente. O
exercício da cidadania não deixa de ser o exercício da tolerância
ao debaterem, ao se esforçarem em ouvir ideias diferentes das suas
próprias, ao se colocarem no lugar do outro, ao se calarem para
permitir que o outro fale, ao não se calarem indiferentes diante de
propostas diferentes ou contrárias às suas, ao se mostrarem
dispostos a ouvir, a falar, a debater, a conversar e a dialogar.
Neste contexto, Paulo Freire dá excelente contribuição e exemplo
da tolerância necessária à Educação para a Paz. Sua
universalidade indica devermos ultrapassar a visão parcial da
Educação para a Paz e da tolerância, correndo o risco de torná-las
opacas e as pessoas que nelas creem, míopes, na voz do próprio
Paulo Freire (2006).
Qual tolerância é necessária à Educação para a Paz freireana?
Como se relacionam tolerância e Educação para a Paz em Paulo
Freire? Para Freire,
[...] a paz se cria, se constrói
na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria,
se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso,
não creio em nenhum esforço chamado de Educação para a Paz que,
em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta
miopizar as suas vítimas (2006, pág.387).
A tolerância é virtude, é verdadeira – quando relacionada à
conquista ou à manutenção da paz nas relações, sejam elas
internacionais ou interpessoais. Nunca como indulgência, ou
condescendência – um certo favor que o tolerante faz ao
tolerado, onde a pessoa tolerante é “bondosa” e “perdoa” a
inferioridade do outro, num tipo de “tolerância” alienada e
alienante que obstrui a Educação para a Paz. Na verdadeira
tolerância “não há discursos ideológicos, explícitos ou
ocultos, de sujeitos que, julgando-se superiores aos outros, lhes
deixam claro ou insinuam o favor que lhes fazem por tolerá-los”
(P. FREIRE, 2004, pág. 24).
O exemplo apontado pelo autor da violência cometida contra Galdino
de Jesus, o índio pataxó, assassinado por chamas em todo seu corpo,
mostra suas dores e humilhação, testemunhas da intolerância
gratuita. Enfim, são tantos os exemplos envolvendo violações a
direitos como desigualdade social, preconceito, abandono, desemprego,
exclusão, educação, saúde, meio ambiente, economia - englobados
na mais dura realidade da injustiça social.
Se diante do “diferente” a tolerância é universal, diante da
injustiça social, a tolerância requer limites. Afinal, como
calar-se diante de situações e atos violentos, que humilham,
coagem, destroem? Para defender a justiça e a tolerância dos
intolerantes, é importante refletir sobre a necessidade dos limites
à tolerância. Tais limites são considerados apenas como último
recurso a ser utilizado na defesa de valores que estão sendo
colocados em risco, como a justiça ou a própria tolerância. Aqui,
a violência é considerada como toda e qualquer ação no sentido de
conter uma outra violência. Trata-se de uma violência, porém, que
tem por objetivo a proteção, a defesa, e não o revide, a vingança.
Piaget (1934/1998) aponta que a Educação para a Paz é possível
desde que não se tenha como objetivo uniformizar os valores
culturais dos países, das pessoas. Propõe que “nenhuma das
ideologias contemporâneas é, em princípio, contraditória com a
ideia de paz” já que países democráticos se fundamentam sobre
princípios cuja compreensão é facilmente relacionada à
democracia, enquanto países de governos autoritários têm como
inimigo a revolução interna e temem que por ela, sua nacionalidade
possa desmoronar. Para nosso autor, a Educação para a Paz deveria
enxertar-se na própria educação nacional, segundo o ponto de vista
de cada país. Trata-se de um convite para “compreender os pontos
de vista do adversário, sem subestimá-los e sem abandonar o seu
próprio”[...] (1998, pág.133). Sem isso, o isolamento será fatal
– e “todos sabemos para onde conduz o isolamento num mundo onde
tudo está inter-relacionado econômica, política e
espiritualmente”. Compreender o outro torna-se necessário no
contexto da Educação para a Paz pois é uma capacidade evolutiva e
à medida em que nos separamos de nossas ideias falsas, preconcebidas
com relação ao outro, ganhamos uma nova atitude de reciprocidade
que liberta do egocentrismo inicial. Para isso, embora importante,
não basta passar aulas inteiras com ensino verbal sobre os problemas
que atingem a paz nas relações interpessoais e internacionais.
Requer um trabalho de reflexão, tomadas de consciência. Não é
utópico procurar manter as consciências particulares, não se trata
de formar uma consciência universal que reprima as consciências
particulares, tampouco se trata de colar mentalidades umas sobre as
outras, dominando-as e generalizando-as. O método proposto por
Piaget consiste em “criar em cada pessoa um método de compreensão
e de reciprocidade”. Assim se expressa: “que cada um, sem
abandonar seu próprio ponto de vista e sem procurar suprimir suas
crenças e sentimentos [...] aprenda a se situar no conjunto dos
outros homens” (1998, pág.135).
Vemos aí uma teoria que se propõe processual, passando por etapas
de desenvolvimento. A capacidade de se colocar no lugar do outro
apresenta características em cada uma das 5 fases propostas por
Selman (1989), do egocentrismo ao altruísmo, a partir do referencial
piagetiano que fundamentou as pesquisas de Mestrado e de Doutorado
sobre Educação Para a Paz de Freire (1998 e 2004, respectivamente)
cujos resultados reforçam as relações entre as ideias de Piaget e
Freire quanto à Educação para a Paz: a emancipação freireana
articula-se à compreensão piagetiana no fato de haver alguns pontos
de intersecção: ambos buscam o diálogo como forma não violenta de
resolver conflitos; a reciprocidade, caminho para a justiça social;
ambos refutam a ideia de uma Educação que “miopiza” os
envolvidos por meio do ensino verbal/educação bancária. Enquanto
P. Freire (2006) propõe que a busca da verdade ocorra pela
emancipação, Piaget ensina que a verdade nunca se encontra pronta,
mas é elaborada penosamente, graças à própria coordenação
dessas perspectivas. Há muitos e diferentes olhares para a Educação
para a Paz – mas só a conseguiremos na medida em que, em vez de
fecharmos os olhos aos pontos com os quais não concordamos,
procuremos compreender suas motivações, seus interesses, seus
valores – para podermos sopesá-los, conhecê-los, compreendê-los
– o que nos fará concordar ou discordar, negar algumas vezes –
mas não com violência. Pelo debate conversamos, dialogamos,
toleramos, aceitamos, compreendemos e defendemos nossas ideias e
valores por meios muito mais humanizados e não violentos, pelo
diálogo, argumentação, abertura de espírito. Esta é a proposta
da Educação para a Paz que desejamos: difícil, mas possível.
Para isso, é preciso:
Desenvolvimento Intelectual: o conhecimento dos conceitos
apresentados;
Desenvolvimento Afetivo: o desejo de fazer, de buscar a justiça e a
paz nas relações;
Desenvolvimento Moral: o desejo de fazer o que é justo, de levar em
conta os desejos e as necessidades do outro e não apenas o seu
próprio antes de tomar uma decisão.
Referências
FREIRE, Ana Maria
Araújo de. Educação para a paz segundo Paulo Freire. In Educação
(Revista.) Porto Alegre, RS: no. 2, p. 387-393, Maio/Ago. 2006.
FREIRE, Nadia Maria
Badue. Educação para a Paz: um estudo sociomoral realizado na
sala de aula da Universidade São Francisco. Tese de Mestrado.
Não publicado. 1998.
______ . (org.).
Educação para a Paz e Tolerância: Fundamentos Teóricos e
Prática Educacional. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
FREIRE, Paulo.
Pedagogia da Tolerância. Organização e notas de Ana Maria
Araújo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
JARES, Xésus. Educação
para a paz: sua teoria e sua prática. Porto Alegre:
Artmed, 2002.
PIAGET, Jean. É
possível uma Educação para a paz? In PARRAT, Silvia e TRYPHON,
Anastasia. Sobre a Pedagogia: Textos inéditos. Trad. de
Claudia Berliner. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
SÁEZ, Pedro. Propostas
para uma Pedagogia da paz. Disponível em
<www.artmed.com.br/patioonline/fr_conteudo.php?codigo=338&secao=54&pai=53>,
acessado em 15 de dezembro de 2004.
__________________________________________________________________________
Título: Os Jogos
Cooperativos e a mediação de conflitos escolares: as possibilidades
de ação dentro do contexto educacional
Autor:
Willian
Batista dos Santos
Telefone
para contato: 3278-4722/
8593-6581
Formação
Acadêmica: Graduado em educação
física pela Universidade Federal de Goiás; Especialista em
Atividade Física, Saúde e Educação (pela mesma Instituição de
Ensino Superior) e Especialista em Educação Infantil pela Faculdade
Ávila. Atualmente desenvolve pesquisas na área de formação
continuada de professores de educação física e no campo de jogos
populares, com ênfase no estudo dos jogos cooperativos e sua relação
com a educação formal.
Os Jogos
Cooperativos e a mediação de conflitos escolares: as possibilidades
de ação dentro do contexto educacional
Resumo: Este
estudo tem como pressuposto a importância dos Jogos Cooperativos
como alternativa pedagógica na mediação e resolução pacífica
dos conflitos que emergem no cotidiano escolar. Tal abordagem é
baseada nos preceitos de uma Educação para a Paz, aliada a um
processo contínuo e permanente de conscientização dos estudantes,
amparado em uma concepção crítica da paz e do tratamento criativo
do conflito, com vistas a contribuir com o desenvolvimento de um novo
tipo de cultura, a Cultura de Paz.
Palavras-chave:
Cultura
de paz, educação para paz, conflitos, jogos cooperativos
Introdução
Em meio ao
crescente debate conceitual e metodológico que as instituições
educacionais vêm estabelecendo com a Cultura de Paz e as formas de
mediação de conflitos dentro do contexto escolar, surge a
necessidade de estabelecer um diálogo com a realidade, em busca de
novas alternativas e experiências pedagógicas capazes de contribuir
com as discussões em questão.
Dessa forma,
procuraremos apresentar os Jogos Cooperativos, ao longo desse artigo,
como um importante instrumento de mediação e resolução pacífica
dos conflitos que emergem no cotidiano escolar.
Situando o
conflito dentro na questão
Hoje em dia, o
conflito é interpretado como um fato negativo, visto como uma
realidade não desejável, como algo que deve ser evitado de qualquer
forma. Isso se deve a concepção tradicional da paz, que a define
como um estado de quietude caracterizado pela ausência de conflitos
(CALLADO, 2004).
A partir de uma
concepção crítica de paz, baseada na superação das contradições
históricas ocasionadas pelo sistema capitalista – principal
gerador de violência e conflitos –, e amparados em um processo
dinâmico, orientado para discutir e traçar novos caminhos em busca
de condições que nos permitam alcançar as circunstâncias
desejadas, verificamos a possibilidade de novas perspectivas para
entender os conflitos e também confrontá-los.
Baseado na
concepção crítica de paz, o conflito deixa de ser evitado, para
definir-se como um fato consubstancial às relações humanas, sendo
necessário para compreendermos as ambigüidades existentes no meio
social e suas manifestações em âmbito pessoal e interpessoal.
Dessa forma, o
conflito deixa de ser considerado como um elemento negativo em si
mesmo, de modo que seu caráter, positivo ou negativo, virá
determinado pela forma de regulá-lo e pela possibilidade de
beneficiar a todas as partes implicadas (CALLADO, 2004).
Dentro desse
contexto, entendemos que a compreensão e a busca de soluções para
os conflitos identificados na realidade social, podem ser
potencializados pelas instituições educativas formais (Escola), por
meio de um processo educativo, dinâmico, contínuo e permanente, que
possibilitem aos estudantes identificar os fatores geradores de
conflitos em seu cotidiano escolar e familiar, bem como os agravantes
sociais responsáveis pelos diversos tipos de violência estrutural,
traduzidos pelas desigualdades sociais presentes em nosso planeta.
A implementação de
um processo educativo que não nega o conhecimento ao estudante e o
coloca diante das diversas questões geradoras de conflito, por meio
de discussões e debates significativos e da aplicação de enfoques
sócio-afetivos e problematizadores, pretende desenvolver um novo
tipo de cultura, a Cultura da Paz, que ajude as pessoas a desvendar
criticamente a realidade, para poderem situar-se diante dela e, em
conseqüência, nela tomar parte” (JARES, apud CALLADO, 2004, p.
32)
Assim os processos
educativos formais direcionados a construção de uma Cultura da Paz,
segundo Callado (2004, p. 31-32)
(...) implica uma
postura ativa diante de determinados fatos comuns a nossa sociedade,
que habitualmente funciona de forma violenta. É, portanto, o
contrário da passividade. A passividade supõe uma forma de
reprodução do modelo social imperativo, pois, como já vimos, para
entendermos a paz como um processo contínuo, é necessária uma
participação ativa tendente a modificar determinadas propostas
sociais e a evitar, consequentemente, a perpetuação do modelo
existente, substituindo-o por outro em que haja condições
necessárias para erradicar as atitudes violentas, com o emprego da
igualdade e a justiça social”.
Segundo Gernika
Gogoratuz, (1995), Rodríguez (1995), Velázquez e Fernández (2002)
(apud Callado, 2004, p. 40), uma Escola que visa implementar a
Educação para a Paz deve fomentar os seguintes aspectos:
- O uso do diálogo.
- O aprendizado cooperativo.
- O desenvolvimento da afirmação da personalidade.
- O estabelecimento das normas reguladoras da escola num padrão de democracia participativa e igualitária.
- O desenvolvimento da empatia.
- A idéia de que a violência é evitável.
- A regulação pacífica dos conflitos.
Além disso, Callado
(2004), afirma que o planejamento e a intencionalidade no ato
educativo são fundamentais para dar início ao processo de
construção de projetos vinculados a Educação para a paz dentro
das escolas. Diante disso, é necessário:
- Estabelecer, de forma consensual, o conteúdo concreto do que se entende por Educação para a Paz, seu significado e implicâncias educativas, e delimitar os aspectos da mesma que se irá trabalhar;
- Delimitar os objetivos e os conteúdos para cada etapa;
- Determinar o perfil ou modelo de professor de acordo com a Educação para a Paz, o que nos deve obrigar a uma reflexão constante sobre o nosso papel na instituição educacional e na sociedade;
- Estabelecer os critérios metodológicos gerais;
- Concretizar as atividades educacionais comuns a todo o centro educacional;
- Especificar os critérios gerais de avaliação e o sentido de sua orientação;
- Designar os materiais e recursos necessários para poder levar à prática este tema transversal;
- Avaliar e descrever as necessidades organizacionais, tanto na aula como no centro educacional, necessárias para abordar a Educação para a Paz.
Assim, podemos
afirmar que ao desenvolvermos nosso trabalho no cotidiano escolar,
baseado nos preceitos de uma Educação para a Paz, que constitui um
processo de conscientização contínua e permanente dos estudantes e
da comunidade escolar de modo geral, partindo da concepção crítica
da paz e do tratamento criativo do conflito, tende a contribuir com o
desenvolvimento de um novo tipo de cultura, a Cultura da Paz.
E é dentro dessa
perspectiva que observaremos os Jogos Cooperativos de agora em
diante, ou seja, como uma fonte rica para o desenvolvimento de novas
reflexões e ações direcionadas a resolução dos conflitos e
implementação da Cultura de Paz dentro das escolas.
Os jogos
cooperativos e a mediação de conflitos escolares
É evidente no
contexto atual a perda de valores essenciais para a vida em sociedade
à medida que há o crescimento da miséria, da exclusão, da
violência, do individualismo, da competitividade e da exploração
do homem pelo homem. Em virtude disso, muitas pessoas estão
convencidas de que essa é a natureza
humana.
Mas, se acreditamos que essa é a verdadeira natureza
do homem
e esperarmos dele esse comportamento, então sem dúvida o teremos.
Todavia, em meio a todo esse negativismo, há vislumbres do que o
homem tem sido e do que ele pode ser (ORLICK, 1989)
Segundo Orlick
(1989), a destrutividade e a crueldade em larga escala passaram a
existir com o aumento da produtividade, a divisão do trabalho e a
criação dos Estados com suas hierarquias e elites. Entretanto, esse
autor também aponta que mesmo diante de um quadro tão caótico e
desolador “(...) O homem mostra sua capacidade de ser uma criatura
afetuosa, amorosa e compassiva, apesar de ter sido criado em uma
cultura altamente industrializada e competitiva (...)” (1989, p.
10).
Ainda, de acordo
com Orlick (1989), os seres humanos possuem a capacidade de assumir
tanto um comportamento competitivo como cooperativo. No entanto, os
comportamentos que farão parte do seu repertório dependerão em
larga escala do aprendizado social decorrente dos valores presentes
nos processos educativos e formativos aos quais forem submetidos.
Diante disso,
acreditamos que cabe a Escola dar sua parcela de contribuição na
formação de seres humanos sensíveis e comprometidos com as
mudanças coletivas. Para a efetivação de tal tarefa, consideramos
ser necessária a adoção de práticas educativas lúdicas e
significativas, direcionadas ao resgate e formação de valores
relacionados à solidariedade, cooperação, inclusão, respeito às
diferenças e valorização da paz.
Sabemos
que os jogos além de serem contagiantes e atrativos são
evidenciados como um dos processos mais ricos para se atingir a
educação, pois através deles existe a oportunidade para
desenvolvimento do relacionamento humano, das responsabilidades
coletivas, da criatividade (FRIEDMANN, 1996) e da promoção de
reflexões mais amplas, a cerca da forma de organização social em
que vivemos (segregacionista, excludente, individualista e
competitiva).
Mas,
diante das potencialidades educativas que podemos desenvolver com o
auxílio dos jogos, também temos o dever de refletir sobre algumas
questões importantes que o envolve, apresentadas por Brotto (1999,
p. 25-26): “O jogo educa para quê? Qual a visão de mundo e
humanidade e que valores estão por trás dos jogos que jogamos e,
especialmente, daqueles que propomos para crianças, jovens e adultos
jogar? Que Habilidades Humanas estão sendo sensibilizadas e
potencializadas através dos jogos? Temos oferecido aos nossos
estudantes alternativas para jogar com autonomia e cooperação?”
Diante
de tais questões verificamos que o jogo não representa apenas o
vivido, também prepara o devir (FREIRE, 1989).
Assim,
a experiência de jogar é sempre uma oportunidade aberta, não
determinada, para um aprender relativo. Dependendo dos princípios,
valores, crenças e estruturas que estão por trás dessa
"minissociedade-jogo", podemos tanto aprender a sermos
solidários e cuidar da integridade uns dos outros, como, ao
contrário, podemos aprender que jogando podemos ser mais importantes
que alguém, e se importar muito pouco, com o bem-estar dele (Orlick,
1989, p. 107).
Se
os padrões das brincadeiras preparam as crianças para os seus
papéis como adultos, então será melhor nos certificarmos de que os
papéis para os quais elas estão sendo preparadas sejam desejáveis.
Na
declaração de Tenzin Gyatso - o XIV Dalai Lama, (apud BROTO, 1999,
p. 51-52), ele afirmou:
Creio
que para enfrentar o desafio de nossos tempos, os seres humanos terão
que desenvolver um maior sentido de responsabilidade universal. Cada
um de nós terá de aprender a trabalhar não apenas para si, sua
família ou país, mas em benefício de toda a humanidade. A
responsabilidade universal é a verdadeira chave para a sobrevivência
humana.
Diante
das novas responsabilidades e ações que devemos assumir e
implementar para contribuir com a construção de um mundo mais
igualitário e democrático, verificamos a intensa necessidade de
conscientizar os estudantes sobre a importância do trabalho
cooperativo, que tem como princípio básico o trabalho em grupo,
cuja finalidade é alcançar/atingir um objetivo comum, de modo que
todos sejam beneficiados de forma igual com seu produto final, seja
ele material ou imaterial.
Os
Jogos Cooperativos nascem justamente como forma de atender as novas
demandas sociais, vinculadas ao combate à excessiva valorização
dada ao individualismo e à competição exacerbada, na sociedade
moderna, mais especificamente, pela cultura ocidental (BROTTO, 1999).
Foram criados com o objetivo de promover, através das brincadeiras e
jogos, a auto-estima; a valorização do trabalho em grupo; o
reconhecimento das diferenças (pessoais e de grupo); o
desenvolvimento de habilidades e da criatividade; o combate a
exclusão e ao preconceito; o valor da partilha e da construção de
bens coletivos; a reflexão crítica sobre a competição e os danos
que causa à sociedade de um modo geral.
Durante a vivência
dos Jogos Cooperativos percebemos que os participantes envolvidos
jogam
uns com os outros, ao invés de uns contra os outros;
jogam
para superar desafios e não para derrotar os outros; jogam
pelo
prazer de jogar; jogam
para atingir um objetivo comum e não para fins mutuamente
exclusivos; jogam para libertarem-se da competição, da eliminação,
da agressão física; jogam para que ocorra um aumento da
comunicação, da empatia e do potencial criador humano; jogam para
diminuir a pressão para competir e exterminar a necessidade de
comportamentos destrutivos; jogam para promover a interação e a
participação de todos, e deixar aflorar a espontaneidade e a
alegria de jogar. (BROTTO,
1999; BROWN, 1994; CORREIA, 2006; ORLICK, 1989; SOLER, 2005, 2009).
Diante
de tantos argumentos e fatos, observamos que os Jogos Cooperativos
assumem grande importância dentro dos processos educativos que
almejam implementar uma Educação para a Paz, que visa tratar o
conflito em suas múltiplas dimensões, não como algo indesejável,
mas, como algo inerente as próprias relações interpessoais e as
contradições existentes em nossa sociedade.
Considerações
finais
Educar
para a paz é uma necessidade eminente. Trabalhar com o objetivo de
formar seres humanos sensíveis, solidários, cooperativos, justos,
confiantes, criativos, reflexivos e participantes também é
responsabilidade da Escola e dos profissionais que atuam na educação.
Dessa forma,
acreditamos que os Jogos Cooperativos constituem uma alternativa
inovadora para o processo educativo vinculado à Educação para a
Paz e na mediação pacífica e crítica dos conflitos que emergem no
cotidiano escolar, ao promover a ética da cooperação e auxiliar a
melhoria da qualidade de vida para todos, sem exceção. Por ser uma
possibilidade de transformação e construção de relações mais
humanas, justas e igualitárias, já que contribuem no processo de
ensino e aprendizagem, por favorecerem a inclusão e combater a
lógica do fracasso. Além de possibilitar o desenvolvimento da
auto-estima, despertando e desenvolvendo talentos, habilidades
pessoais e a criatividade como peças singulares, importantes e
fundamentais para o relacionamento respeitoso e harmonioso com o
outro e com o grupo ao qual pertencemos.
Referências
Bibliográficas
BROTO; Fábio Otuzi.
Jogos
cooperativos: o jogo e o esporte como um exercício de convivência.
Dissertação
de (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação Física, 1999.
BROWN, Guillermo.
Jogos
cooperativos: teoria e prática.
São
Paulo: Sinodal, 1994.
CALLADO, Carlos
Velázquez. Educação
para a paz: promovendo valores humanos na escola através da Educação
Física e dos Jogos Cooperativos. Santos:
Projeto Cooperação, 2004.
CORREIA, Marcos
Miranda.
Trabalhando
com jogos cooperativos: em busca de novos paradigmas na educação
física.
2 ed. Campinas, SP: Papirus, 2006.
FREIRE, João
Batista.
Educação
de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física.
Editora
Scipione Ltda., SP: 1989, 224 p.
FRIEDMANN, Adriana.
Brincar:
crescer e aprender o resgate do jogo infantil.
São
Paulo: Moderna, 1996.
ORLICK, Terry.
Vencendo
a competição.
São
Paulo Círculo do Livro, 1989.
SOLER, Reinaldo.
Brincando e Aprendendo com os Jogos Cooperativos.
Rio
de Janeiro: Editora SPRINT, 2005.
__________.
210 novos jogos cooperativos para todas as idades. Rio
de Janeiro: Sprint, 2009.
Perfeito este seminário!!! Muito bom recarregar energias para lutar pela paz na escola e perceber que não estamos sozinhos nessa caminhada!! Sou professora da Escola Francisco Matias, no Pq. AnhangueraI e lá já estamos nessa luta há algum tempo e posdemos dizer que não é fácil mas não desistiremos jamais!! contamos com este apoio importante, no sentido de nos dar suporte para ampliar nosso projeto. Se puderem sugerir ou disponibilizar palestrantes que possam abordar os assuntos: drogas; violência; abuso sexual;e a própria "paz" com as crianças, seria ótimo! Podemos agendar... abraços Prof.ª Ana Lúcia
ResponderExcluirVisitem meu blog, será um prazer !
wwwideiasdalu.blogspot.com
Impossível dizer como foi importante o Seminário para nós, profissionais da Educação engajadas na construção de Pontes para a Paz, agradeço a todos os Organizadores do Evento na pessoa da nossa Mestra Genivalda....MUITO OBRIGADA!
ResponderExcluir"A paz invadiu o meu coração.De repente, me encheu de paz..." esse trecho da música de Gilberto Gil traduz bem como eu me senti participando do I Seminário de Educação da Paz. Foi maravilhoso. Amanhã estarei na reunião de planejamento da escola que trabalho (Professor Aristoclides Teixeira) falando tudo sobre o que eu vi e aprendi neste Seminário. Obrigada pela oportunidade. Parabéns para todos. Jacqueline (Profa. de Arte).
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