EDUCAÇÃO PARA A PAZ NUM CONTEXTO HIPERMODERNO
Marco Antonio Gonçalves - UCS1 (1 Mestrando no PPGFil – Ênfase em Ética)
Resumo: No desejo de contribuir com o debate atual em relação ao compromisso, à organização e à atuação dos
educadores – no esboço de uma nova concretização da cidadania e de uma cultura de paz -, as reflexões que se
seguem são fruto de convicções e especulações teóricas, de aulas lecionadas, discussões realizadas com
organizações, educandos e educadores, promovendo e escrevendo sobre temas de direitos humanos e paz.
Diante do panorama hipermoderno no qual estamos inseridos, marcado por angústias, dilemas e paradoxos,
refletir sobre as influências das marcas da hipermodernidade atual torna-se um desafio de reflexão filosófica para
todos aqueles que pretendem fazer uma leitura crítica-interpretativa desta realidade. Pretende-se contribuir na
busca de um sentido e rumo para uma ação educadora que se pretende atingir na reflexão e transformação do que
deva e possa ser diferente.
A inclusão do tema paz e educação para a paz devem reestruturar as vivências escolares, trazendo novas
possibilidades, irradiando e polarizando ações de paz e não violência coletiva, comunitária e intersubjetivamente.
A escola deve ser potenciadora do protagonismo infanto-juvenil para romper o ciclo de violência e para reduzir
ou evitar conflitos; construir e consolidar espaços concretos para que se concretizem os direitos humanos, a
cidadania e a paz, num processo de mudança de uma cultura de violência para uma cultura de paz, num diálogo
permanente com toda a comunidade escolar.
Só em torno de um processo dialógico e propositivo, que permeia a educação, numa reflexão séria, criativa e
engajada, será possível articular as diferenças e avançar no diálogo e na construção da paz.
Palavras-chave: educação; hipermodernidade; paz; cultura; cidadania.
Introdução
O século XX e também a primeira década do século XXI, apesar de ser um período
brilhante e criativo da história da humanidade, é permeado de situações das quais não
devemos nos orgulhar: momentos trágicos e cruéis, marcados por guerras, genocídios,
fanatismo terrorista, fome, doenças e desastres ambientais.
O imenso avanço tecnológico e científico trouxe, sem dúvida, muitos aspectos
positivos para a humanidade com o desenvolvimento nas áreas da comunicação, saúde e
transportes. Trouxe, ao mesmo tempo, problemas extremamente graves: o próprio ser humano
parece ter perdido o sentido profundo da vida e do desenvolvimento, até o ponto de pôr em
risco a própria sobrevivência da vida humana, ou ameaçar a possibilidade de vida para as
gerações futuras.
Época duríssima, de contradições e paradoxos, ambiguidades e angústias. Podemos
questionarmos se o uso de nossa capacidade tecnológica não está contribuindo para a coisificação do home e a humanização das coisas: enquanto, por um lado, nosso tempo parece
valorizar a pessoa, por outro, a reduz a mercadoria descartável, a aquisição de bens materiais
e o lucro parecem tornar-se mais importantes do que dignidade e solidariedade.
Isso tudo que impregna a contemporaneidade precisa ser compreendido, clara e
honestamente, a fim de avaliarmos e enfrentarmos as forças que nos fazem ser o que somos e
buscar alternativas para ser o que desejaríamos e precisaríamos ser.
A situação que vivemos provoca uma gama de reações, todas interligadas: sentimentos
de insegurança, autoconfinamento, insensibilidade, apatia, alienação. Sabemos e sentimos que
a violência amedronta. Uma das formas de defesa contra ela é, com a construção, por parte do
indivíduo, de uma ilusão da não-existência da violência, criando, assim, uma defesa
psicológica que lhe permite um espaço de tranquilidade.
Somos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança, de aventura e
crescimento, de sensibilidade e empatia, de auto-afirmação e autopreservação,
autotransformação e transformação desta realidade com um desejo consciente de luta pela
mudança do mundo particular (meu mundo), transformando-o em nosso mundo, ou seja, um
movimento subjetivo e dialético de vir-a-ser que nos desafia constantemente.
A insegurança permeou e permeia nossa existência cotidiana: muitos não se sentem
seguros em casa, na rua ou no trabalho, no carro, ônibus ou avião, na igreja ou no
supermercado. Parece que, além da crise e do seu conhecimento geral, existe um sentimento
de desesperança. Neste sentido, há um grande e crescente número de pessoas, inclusive no
meio acadêmico, com um discurso que garante a não-existência de alternativa para o sistema
de mercado global, que produz estes desastres e impede o planejamento e uma práxis social
que poderia lutar para revertê-los.
Nossa preocupação e centro de reflexões sobre a possibilidade do futuro se voltam
para o grande desafio e desejo da paz – entendida como um recíproco reconhecimento da
dignidade, dos direitos e dos deveres. Ao definir a paz como a plena realização da dignidade
humana, a criação de uma convivência harmônica fundamentada no trabalho, na liberdade e
na justiça, sabe-se que esse raciocínio está inserido num determinado momento histórico e
intelectual dos autores que refletem e atuam sobre esta problemática, ou seja, suas obras ou
artigos assumem os riscos de equívocos, superficialidades e incompreensões.
A atuação e as grandes preocupações sobre a temática da paz estavam voltadas, no
início da década 80 do século XX, à questão armamentista; entretanto, hoje se percebe uma
maior amplidão do conceito de paz em suas múltiplas dimensões, conectando profundamente
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as questões do militarismo, do desenvolvimento e do subdesenvolvimento econômico, da
degradação ambiental e da violação aos direitos humanos.
Nos últimos anos, a violência tem sido experimentada também como um problema
educacional por sua emergência dentro da própria comunidade escolar, tornando-se um
caminho de pesquisa e estudo de vários autores e uma pauta obrigatória da agenda
educacional tanto na esfera pública quanto na privada.
As questões relativas à violência no meio escolar abrangem um vasto complexo de
causas e variáveis, exigindo uma reflexão sistemática e um estudo desprendido do viés
emocional que geralmente acompanha o debate sobre o tema. Contudo, não basta reagir a esta
violência ou à cultura de violência. É preciso pensar como construir uma sociedade
verdadeiramente pacifista e uma cultura de paz.
Paz: mais do que um conceito, um valor humano
A paz é a soma de valores, atitudes e comportamentos que refletem o respeito à vida, à
dignidade e aos direitos da pessoa. Não é a ausência do conflito, mas é a procura de
resoluções, por meio do diálogo e do trabalho integrado. Constrói-se a paz com os valores e as
atitudes preconizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos: justiça social,
igualdade de direitos, eliminação de preconceitos, respeito a minorias, educação universal,
equilíbrio ecológico, liberdade política. A paz, sem direitos humanos, nada é.
A sociedade está em paz não só quando a guerra está ausente, mas também quando
existe a possibilidade de realização, para todos os seus integrantes, de valores como a vida, a
liberdade, a justiça, a solidariedade, etc. Abbagnano (2007, p. 870) afirma que, no fim do
século XX, o conceito de paz deseja sintetizar: “o conceito grego de eirene como ausência de
guerra; o romano, de pax como bem-estar material; o judaico, de shalom como bem-estar
espiritual; e o cristão, de amor como não violência.”
Contudo, Guimarães (2011), ao trabalhar com o conceito de paz alerta-nos que
devemos superar o conceito ocidental de paz como ausência de algo ou como um espaço
entre duas guerras, pode esconder a justificação de violação dos direitos humanos, a pobreza e
a miséria, mas reforçarmos o aspecto positivo do conceito, associando-o a experiências
humanas, tais como justiça e igualdade.
A paz é, portanto, um conceito pluridimensional: paz interior, estar em paz consigo
mesmo; paz social, estar em paz com os outros; paz ambiental, estar em paz com as demais
espécies e com a natureza em geral; paz militar, a ausência de confronto armado. Podemos
perceber as violações ou ausência de paz nessa pluridimensionalidade quando: consigo
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mesmo, percebemos pessoas que não encontram sentido para a vida, o ritmo imposto nas
grandes metrópoles que gera stress, neuroses, frustrações e, algumas vezes, suicídio; com os
outros com as tensões, guerras urbanas e disputas familiares, conflitos religiosos e colapsos
econômicos, medos, injustiças, prepotências, violações dos direitos humanos, que rondam as
sociedades contemporâneas; com o ambiente, diante da exploração irracional de nossas
florestas, contaminação dos alimentos, maus tratos aos animais.
Sinais de insegurança aparecem aos milhares. São tantos que, na maioria das vezes,
não causam estranheza, passam despercebidos, nos acostumamos. Diante desta situação,
algumas reações merecem ser destacadas e refletidas: a pessoa sente-se só, isola-se, o que é
uma dimensão preocupante, pois esvazia possibilidades, empobrece o ser humano, faz com
que a pessoa deixe, de antemão, de construir fatos, relacionamentos, expandir sua vida nos
outros, de participar, vivenciar as manifestações artísticas, sociais, culturais e políticas,
constrói, paradoxalmente, barreiras imaginárias e esquemas grupais e sociais para sentir-se
protegido – grupos, guetos, bondes, tribos, ao mesmo tempo em que se revela o medo e a
incapacidade de viver em ambientes abertos, sociais, livres. Podemos exemplificar isto com a
oferta cada vez mais intensa de condomínios fechados com esquemas de segurança própria,
sistema de alarmes sofisticados, etc.
Um cuidado que devemos ter nesta análise é não esquecer que a paz não é uma
construção individual ou isolada, mas possui uma compreensão mais coletiva e comunitária.
Ela não nos é dada. É um processo em construção, a ser instaurado e construído socialmente,
sendo todos nós sujeitos e criadores.
Mas é importante entender, também, que violações da paz não se resumem apenas aos
confrontos militares, que são as guerras, inclusive Guimarães relembra que “a paz se opõe,
não à guerra, mas à violência, sendo a guerra uma das tantas – mas não única – expressões de
violência”. (2011, p. 188).
Na verdade, a paz não é apenas a inexistência de conflitos e divergências. A existência
de diferenças e de conflitos e o encontro com o diferente é essencial para a continuidade da
espécie humana, assim como em todas as espécies vivas. Mas é incrível como, em um curto
tempo de existência humana no planeta Terra, o ser humano tornou sua existência permeada
por atitudes de arrogância, inveja, prepotência, ganância e agressividade.
O conflito, muitas vezes, é considerado com algo negativo e associado ao imaginário
da violência. É fundamental desvincular conflito de violência, ampliar a compreensão destes
conceitos. E também é importante analisar porque há esta associação.
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Obviamente a agressividade é uma qualidade necessária à sobrevivência humana e
pode ser positiva ou negativa. Se bem canalizada, pode produzir vida. Leva o indivíduo a
vivenciar dilemas, pois nem sempre é fácil ter consciência da limitação que temos de entender
certas situações e, a partir daí, possibilita ao ser humano a dimensão da escolha, a
possibilidade real de optar por diferentes formas de agir: autoritária, pacífica, violenta,
apática, omissa, passiva, ativa, etc., demonstrando a responsabilidade ética, característica do
agir do ser humano.
O não-controle da agressividade pode gerar violência. Os que se envolvem com a
violência não aprenderam a controlar as suas emoções. A negação da agressividade mal
trabalhada gera complexos que poderão ocasionar a violência brutal e crimes hediondos.
Essas questões mal resolvidas podem gerar algumas patologias, tais como compulsões,
desequilíbrios emocionais que, ao longo do tempo, vão se tornando neuroses podendo chegar
a graus mais avançados, como o caso das psicopatias, doenças mentais cuja característica é o
comportamento anti-social, ou o sadomasoquismo, que busca prazer no sofrimento alheio.
Para Guimarães (2011), ao superar um modelo de paz como ordem e assumi-la num
modelo dialógico-conflitivo, é necessário incluir e ressignificar conceitos, tais como
agressividade - força vital de cada pessoa, necessária para superar os obstáculos e as
limitações próprias do cotidiano-, conflito, luta e desobediência, sabendo-se que
“agressividade, portanto, não se opõe à paz; ao contrário, é ela necessária, como expressão da
vontade da potência de operar a paz. Nesse sentido, o oposto da agressividade seria a
passividade, a resignação, o conformismo”. (2011, p. 197). Assim sendo, o desenvolvimento de uma educação para a paz dependerá da resposta
que damos aos conflitos.
Desafios éticos num contexto hipermoderno
A hipermodernidade não se define como uma nova era que suplantou ou sepultou a
modernidade. Pelo contrário, é um tempo de transição, de busca e de incertezas, de problemas
e interrogações, muito mais do que respostas. Estamos vivendo um novo tempo no qual
emergem situações novas, um clima diferente de vida e de pensamento. Vivemos um novo tempo com características peculiares: um sentimento de liberação
em relação aos grandes discursos políticos de cunho messiânico, uma espécie de “fim das (O termo hipermodernidade, cunhado por Gilles Lipovetsky (2005), deve ser diferenciado do conceito de pósmodernidade.
Ele defende que os princípios constitutivos da modernidade – racionalidade técnica, economia de
mercado, democratização do espaço público e extensão da lógica individualista – não foram rompidos, mas estão
sim radicalizados.) ideologias”, o surgimento de uma nova cultura hedonista, o culto excessivo e paranóico ao
“corpo perfeito”, a amplitude e a rapidez das comunicações e das relações intersubjetivas, a
liberação em relação aos costumes, inclusive no que diz respeito à vida sexual – a revolução
sexual que afetou toda uma geração não tem mais nenhum sentido para as novas gerações
porque elas foram criadas nesse contexto, o que não retira delas, porém, o medo e ansiedade
diante das diferentes motivações e incertezas que as cercam. Uma realidade percebida numa
visão “pornográfica” na qual tudo é mostrado, tudo é visível, tudo está e pode ser visto e
avaliado extrema e constantemente em milhões de páginas publicadas na internet e nas redes
sociais informatizadas e atualizadas diariamente.
Todo esse contexto surge como uma saída de um grande ciclo histórico dominado pela
ideia de futuro, em nome do novo. O agir humano, que girava em torno de grandes
perspectivas históricas – revolução, luta de classes, nacionalismos –, está destruído pela
ausência de um contramodelo ao que está posto. Hoje, não há outro modelo que não a
democracia ou o mercado globalizado. As críticas aos limites dessa hipermodernidade
existem, porém não vão à sua radicalidade.
A modernidade radicalizou-se a uma velocidade
superior. Tudo hoje parece ser levado ao excesso, ao “hiper”: hipermercados, hipertexto,
hiperterrorismo, hipercapitalismo, hiperclasses, etc.
Milhões de marcas e relações interpessoais vão sendo produzidas e substituídas por
objetos e modelos novos, que o mercado torna obsoletos em curto prazo, alimentando o ritmo
perpétuo de produção, venda, consumo e descartabilidade. Por essa característica da
sociedade hipermoderna – sociedade de consumo ou sistema de objetos, cuja velocidade,
transitoriedade e descartabilidade são os vestígios mais acentuados – tudo e todos ficam como
que obcecados e ávidos pelo novo, perdidos em ambigüidades e em discursos desprovidos de
sentido.
Estamos numa nova era da modernidade que institui o hiperindividualismo: se antes o
individualismo era limitado pelas ideologias, pelas diferenças sexuais, pelo papel da Igreja,
pelo papel do Estado na economia, hoje, na sociedade hipermoderna de consumo, esses
limites foram abolidos tornando os indivíduos cada vez mais senhores de sua própria
existência.
3 Termo que indica tanto a procura indiscriminada do prazer quanto a doutrina filosófica que considera o prazer
como único bem possível, portanto como fundamento moral. O prazer é o princípio e o fim da vida feliz,
vinculado-a à posse de bens materiais.
4 Entenda-se por este conceito uma análise que remeta aos princípios ou às primeiras origens do termo ou do
fenômeno a ser estudado.
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Verifica-se, na atualidade, uma visão estritamente antropocêntrica criada
especialmente pelo mercado que não se preocupa com a ética, com a justiça e, por isso, pouco
ou nada lhe interessa a paz. Isso resulta numa espécie de crise de utopias, de projetos de
libertação e democracia, em populações excluídas, desencantamentos, destruição dos
ecossistemas, individualismo, falta de sentido para a vida, desencadeando uma escalada de
violência, que, muitas vezes, é “naturalizada” nos pensamentos, discursos e ações de diversas
pessoas. Essa violência passa a ser entendida, ao menos por uma parte da sociedade, como o
“único” caminho para a conquista de espaço ou de algo por ela desejado. Assim sendo, o ser
humano torna-se vítima daquilo que ele mesmo produziu: uma cultura de violência, uma
cultura de guerra.
As sofisticações tecnológicas colocam-nos paradoxos e experiências jamais vividas.
Nunca as pessoas estiveram tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes. O indivíduo quer
ser só, sempre e cada vez mais só, ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo estando
só. O tempo e o espaço se comprimiram e a diminuição das distâncias nestas dimensões
básicas da condição humana provocou uma aceleração sem limites. O processo de
constituição da subjetividade exige tempo e a cultura contemporânea manifesta-se imediatista,
o privado torna-se público e as relações intersubjetivas descartáveis.
Nossa sociedade está obcecada e desejosa pelo novo, perdida em ambiguidades e em
discursos desprovidos de sentido. Neste contexto, busca-se, desesperadamente, algo para dar
alívio à existência. Esta experiência de relatividade das verdades, do conhecimento e das
culturas atingiu também o conjunto de normas e valores que orientam a vida das pessoas.
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Num contexto social em que tudo é relativo, também assim o são os valores. Tudo
vale, e se tudo vale, nada vale. A relativização dos valores, por sua vez, vem causando
enormes estragos na convivência humana. Afinal, estamos vivendo uma fase de descalabro
ético, um fim da história e fim da ética, ou uma fase de desconstrução de um moralismo de
submissão, de sacrifício, de condenação do prazer, a partir de um processo construtivo
autônomo e livre? Um cuidado que devemos ter é com a relativação dos valores humanos, a
propagação cada vez maior da intolerância, do desrespeito, da violência e da insociabilidade
entre os membros das instituições sociais.
5 Entendemos por valores, ou princípios, aquelas ideias e conceitos que servem como referenciais ideais que
norteiam atitudes, sentimentos, raciocínios, entendimentos e decisões dos seres humanos. Permeando nossa vida
individual e coletiva, podemos identificá-los, inclusive no âmbito religioso, em diferentes épocas e culturas, e
assumem ares de verdades universais e atemporais, embora atualizados conforme as circunstâncias de cada
época, local, cultura e povo.
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Ao olharmos as ações do ser humano na atualidade constatamos que, quanto maior é a
sua sensação de impotência diante das questões que se apresentam no cotidiano, maior é a sua
tendência para o fechamento, seja individual ou em um bunker de indiferença, ao abrigo das
próprias paixões e das dos outros, sectários e fanatizados. Os indivíduos e grupos com tais
sensações possuem geralmente uma identidade frágil, por isso necessitam de algo externo
para se afirmarem socialmente.
Essa pressão externa pode se expressar nos indivíduos e nos grupos de múltiplas
maneiras: por intermédio do uso da força física, dos bens materiais, do consumo, de títulos, de
cargos, de armas e de drogas. Esses aspectos atingem a todos, mas percebe-se que com
especial atenção a maioria dos jovens, os quais se tornam vítimas e agentes desses conflitos.
Estas são algumas das formas a partir das quais indivíduos e grupos, extremamente
frágeis na sua identidade, potencializam-se e, com isso, sentem-se onipotentes em relação aos
outros e à sociedade e, consequentemente, recorrem à violência6
no intuito de se impor e
“marcar presença”.
Esses indivíduos e grupos oscilam entre a sensação de impotência e a de onipotência.
As duas dimensões revelam que o ser humano, para ser reconhecido, necessita de algo
externo, como se a identidade fosse um adesivo que se pudesse agregar ao corpo sem
necessariamente possuir uma estrutura de personalidade.
Não podemos cair num discurso alarmista e simplesmente sectário. Os conflitos
juvenis sempre existiram e sempre vão existir. São momentos de confrontos, dúvidas,
transformações e amadurecimento. Franklin, em seu artigo “Direitos Humanos na educação:
superar os desafios”, publicado no livro Filosofia, ética e educação, ao defender a
necessidade de um verdadeiro espírito crítico e emancipatório na educação através da
Filosofia na escola – norteadora de um pensamento educacional comprometido com a
discussão e promoção dos direitos humanos - declara que
Precisamos proporcionar ao jovem a possibilidade de construção de seu caráter a
partir de múltiplas escolhas, bem como da responsabilidade por todas essas escolhas.
Que elas não sejam apenas revolucionárias porque é a idade das contestações, que
elas não sejam intimidatórias porque é a idade dos desafios. Na verdade,
proporcionar uma vivência autêntica é proporcionar uma possibilidade de viver a
liberdade plenamente. (2011, p. 390)
6 Neste recorrer à violência podemos refletir: por que agimos de forma violenta? Por que somos, em princípio,
contra a violência e, em certas ocasiões, a praticamos? Em que situações a violência pode ser praticada? Podem
existir uma fundamentação racional e uma justificação moral da violência? Entretanto, devemos analisar a
manifestação da violência além dos seus aspectos físicos: a violência da neutralidade, da calma, da indiferença,
do silêncio, covardia, do egoísmo, etc.
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Diante desse contexto hipermoderno, quais os desafios educacionais?
A escola tem a obrigação de garantir o direito de o jovem ter acesso aos
conhecimentos das diversas áreas, em especial ao filosófico, proporcionando-lhe acesso,
comunicação e vivência de valores éticos e morais pertinentes a toda a humanidade e a
conceitos como tolerância, respeito às múltiplas diferenças, dignidade humana, etc.
O ser humano, diferente dos outros animais, nasce indeterminado, se constitui como
pessoa no relacionamento com os outros. É resultado das relações e correlações que
estabelece e que efetivamente segue concretizando em seu cotidiano. Sem relações, não é
possível construir a identidade humana, pois sozinho não tem como desenvolver sua
personalidade.
Nestas relações é que percebemos que sermos diferentes, nos mais variados aspectos, é
parte constitutiva do ser humano. O reconhecimento de que a espécie humana não apenas se
encontra imersa num mundo repleto de diversidade, como ela própria, embora sendo única, é
extremamente diversa, física e culturalmente falando, é um aspecto fundamental para a
consolidação de uma cultura de paz.
Nesta diversidade em que estamos inseridos, na qual todos sofremos as mais diversas
influências, Franklin vai defender que “se podemos ser diferentes, se podemos optar por essa
ou por aquela escolha, temos algo em comum, a saber: a liberdade” (2011, p. 392-393). As
discussões filosóficas devem e podem, a partir de análises consistentes e significativas, atingir
jovens e adultos em sua vivência escolar e além dela; eles poderão perceber que, através dela
(a liberdade), somos iguais e, apesar de sofrermos determinações diversas, ainda somos livres
para escolher e deliberar, sendo a liberdade determinante para a afirmação de que somos seres
humanos, ou seja, perceber que não há humanidade sem liberdade assumida com
responsabilidade, desde ao relacionamento com o colega ao lado até os posicionamentos mais
globais.
O educador Beust ao defender a importância dos valores na educação, afirma que tanto
os valores humanos quanto os valores desumanos são todos humanos. Somos capazes tanto de
amar quanto de odiar, tanto de praticar atos justos quanto injustos, tanto de promover a
liberdade quanto a opressão. Diz ser fundamental o resgate e a afirmação dos valores
humanos na atualidade, para que
[...] sejamos guiados, a priori, por dois grandes princípios: a atitude dialógica e a
unidade na diversidade. A atitude dialógica nos coloca num permanente diálogo com
o outro, conosco mesmos, com o real, com o ideal, com a vida. Esse diálogo precisa
estar baseado num profundo respeito pela diversidade humana. Mas também precisa
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estar alicerçado numa igualmente profunda certeza da unidade fundamental da
humanidade (2005, p. 15-16)
Outro aspecto a ser analisado é a carência de limites ou o seu excesso fazendo com
que surjam, no indivíduo, insegurança e perda de um marco de referência. Precisamos de mais
princípios e menos regras. Os princípios são os pilares de uma sociedade. As regras, as
normas, as leis devem estar a serviço dos princípios, e não o contrário, pois as regras sem
princípios geram violência.
Nunca tivemos tantas regras como atualmente. Contudo, a falta de limites, a
indisciplina, a agressividade e a violência estão mais intensas. Tudo o que fica reprimido, em
algum momento explode. A falta de limites faz com que essas pessoas se revelem inaptas
para lidar com as frustrações naturais da vida. Elas têm dificuldades para se relacionar em
ambientes marcados por hierarquias, como ambientes familiares, sociais, de trabalho e, em
muitos casos, não conseguem sequer se emancipar, tanto do ponto de vista emocional quanto
financeiro.
As pessoas se satisfazem em enfrentar o próprio medo, não com ações
transformadoras e compromissos éticos de cidadania, mas com uma mera compra de
entretenimento, uma fuga para um imobilismo e conformismo, uma valorização do passado
como recuo ante a insegurança e a incerteza sobre o que deveriam enfrentar amanhã. Quando
esse amanhã não nos oferece a segurança que precisamos para sobreviver, acaba-se
recorrendo ao passado.
Este retorno ao passado é paradoxal. Estamos numa época em que não se crê mais na
existência de um único e categórico sentido, mas sim na construção permanente de sentidos
múltiplos, provisórios, individuais e grupais. Somos desafiados e convidados a sermos artistas
e artífices de nossa própria existência. Em contrapartida, isso traz o aumento da
responsabilidade individual, visto que cada um é co-autor do estatuto moral ao qual adere.
Culturas de paz
A cultura da paz precisa ser estimulada. O desejo de paz está em cada um de nós. Às
vezes escolhe-se o caminho errado: confinamento, isolamento, não querer se envolver para
não se machucar, indiferença, fechar os ouvidos e os olhos.
Paz é a relação com o outro, com a natureza, com a história, com as pessoas. É uma
construção, e nunca uma omissão. É engajamento e envolvimento com a vida que pulsa em
nosso planeta, em todos os aspectos. Esse conceito, em permanente construção, está
intimamente ligado à prevenção e à resolução não-violenta de conflitos.
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Por isso, a humanidade admira os que se engajam na história de construção da paz
entre povos e nações: Gandhi, Mandela, Hélder Câmara, Betinho... São pessoas que tiveram a
capacidade e a coragem de viver intensa e coerentemente valores verdadeiros numa dimensão
política que sempre identificamos com o ideal de paz como ação e como desafio ético.
Muitos, também, são os documentos de referência sobre uma cultura de paz cuja
relevância reside no fato de serem frutos da construção coletiva e de terem se tornado
compromissos assinados pela maioria absoluta dos países.
O Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência, produzido por um grupo
de laureados pelo Prêmio Nobel da Paz e assinado por milhões de pessoas no mundo, aponta
para seis princípios fundamentais para a prática diária de uma cultura de paz: respeitar a vida,
rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreender, preservar o planeta e redescobrir a
solidariedade. Ao salientar este esforço realizado pela Organização das Nações Unidas,
Guimarães relembra que este Manifesto incorpora à noção de paz elementos tais como:
respeito à vida; prática da não violência ativa; partilha do tempo e dos recursos
materiais; defesa da liberdade de expressão e diversidade cultural; promoção de um
consumo responsável e um modelo de desenvolvimento que tenha em conta a
importância de todas as formas de vida e o equilíbrio dos recursos naturais do
planeta; solidariedade, participação, igualdade de gênero e respeito aos princípios
democráticos. (2011, p. 189)
Cultura de paz é uma cultura de não-violência, que se constrói reatando a ligação do
ser humano com o universo, com a natureza e com o próximo. É um equívoco
compreendermos a não-violência como uma perspectiva passiva, de omissão ou não-ação. Ao
contrário, para atingirmos um patamar não-violento, temos que nos exigir um altíssimo grau
de exercício inteligente, criativo, competente e amoroso a fim de encontrarmos soluções nãoviolentas
para os desafios que a vida nos apresenta. Essa atitude não-violenta exige uma
constante vigilância para identificar as manifestações de violência no próprio comportamento
procurando eliminar as raízes que nos fazem responder violentamente diante do conflito.
Essas respostas não violentas estão num imenso rol de motivações – religiosas,
filosóficas, políticas - possibilidades, estratégias e táticas mais diversas (marchas, greves,
jejuns,...) que, se constatarmos as diversas articulações regionais e internacionais e o trabalho
em rede já existente, irá trazer para a educação para a paz um imenso desafio: superar a falta
de informações, ultrapassando os limites da sala de aula e da escola, articulando-se com toda a
comunidade cidadã.
A cultura de paz exige uma pedagogia da convivência e vice-versa. Não é possível
construir uma cultura de paz sem os procedimentos e valores de uma pedagogia para a
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convivência. Nem é possível desenvolver tal pedagogia sem os valores, objetivos e conceitos
da cultura de paz. As duas dimensões se fundam nos conceitos de dignidade, igualdade,
justiça social e liberdade que caracterizam os direitos humanos.
Ela está baseada na tolerância, na solidariedade, no compartilhamento cotidiano, no
respeito a todos os direitos individuais e na busca de soluções criativas para os problemas, por
meio do diálogo, da negociação e da mediação. Isso não significa, de forma alguma, a
eliminação dos conflitos, uma vez que estes são inerentes ao ser humano e, muitas vezes,
salutares se conseguimos dispensar os critérios e a necessidade de dominação do outro. Tratase
de um processo de mudança de consciência de cada ser humano para a estruturação de uma
cidadania planetária baseada na responsabilidade universal.
Estimulando o que há de melhor no outro para tê-lo como parceiro, a cultura da paz
considera a adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância – entendida não
só como um dever de ordem ética, mas igualmente como uma necessidade política e jurídica,
uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma
cultura de paz.
Além disso, o respeito pela diversidade cultural, o que não significa aceitar todas as
ideias, crenças e comportamentos como se fossem iguais e fossem promotoras de todos os
valores indistintamente. Devemos escolher, entretanto, os valores que favorecem a vida em
comum de forma pacífica e o respeito pelos direitos individuais e coletivos – e o
entendimento em todos os níveis da sociedade e nações.
É importante ressaltar, também, que na construção de uma cultura de paz, haja o
respeito e o fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e
informação, assim como a promoção da resolução pacífica dos conflitos,
7
do respeito e
entendimento mútuos e da cooperação internacional8
.
Em fins de conclusão...
Construir uma cultura de paz, sem dúvida, é um clamor urgente e exigirá mudanças
significativas, principalmente por parte dos que consideram suas verdades absolutas, únicas e
intocáveis. Só em torno de um projeto comum para a humanidade, que passa necessariamente
7
Para entender o processo de resolução de conflitos é necessário ter presente a ideia de unidade na diversidade
como um novo paradigma de organização social: que é possível resolver conflitos seculares entre os mais
diferentes indivíduos e povos, que esse processo é um novo método de mediação e de negociação a ser assumido
e exercitado nos âmbitos pessoal, internacional, político, etc.
8 Mesmo sabendo que esse fator é importante, a paz não será alcançada apenas através de conferências e
tratados internacionais, ela não é meramente um conjunto de situações agradáveis ou ausência de pressões
externas
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pela educação, será possível articular as diferenças e avançar no diálogo e na construção da
paz.
Seria um equívoco jogar nos ombros da educação toda a responsabilidade pela
construção de uma cultura de paz. Os educadores, quando capacitados, têm um papel
fundamental na educação para a paz. Diante da complexidade das relações entre o sistema
educacional e a sociedade, entre a reflexão e ação educativas, eles têm o privilégio e a
responsabilidade de gerenciar as características das culturas locais e sua abertura a valores e
horizontes universais.
Somente assim podemos edificar bases sólidas - tendo presente os quatro os pilares de
sustentação de uma cultura de paz: democracia, direitos humanos, desenvolvimento e
desarmamento - para a construção de um novo paradigma das relações humanas e assim
minimizar a exclusão social, a competição, o individualismo, em vista da humanização e da
socialização.
Nesta caminhada por uma educação para a cidadania e uma cultura de paz, o educador,
como sujeito da práxis pedagógica, tem um papel importantíssimo. Uma de suas tarefas é
fazer com que a educação seja crítica, permitindo situar e compreender os problemas no todo
da estrutura social. Deve assumir seu papel de agente de mudanças, de fomentador de
lideranças e deve firmar cada vez mais uma competência técnica, científica e pedagógica.
Frente a essa responsabilidade docente, precisamos exigir uma melhor formação dos
educadores – tanto no nível de curso de magistério quanto em cursos universitários. Essa
formação do educador é um processo complexo e difícil.
Acreditamos não ser possível protelar as soluções para esta problemática. Trata-se de
uma mobilização da qual ninguém pode ser excluído ou dispensado.
Referências bibliográficas
BEUST, Luís Henrique. O valor dos valores na educação. In: Revista Diálogo, ano X, nº 37,
fevereiro de 2005, pág. 14 a 18.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
CESCON, E.; NODARI, P.C. (org) Filosofia, ética e educação: por uma cultura da paz. São
Paulo: Paulinas, 2011. – (Coleção philosophica)
GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. 2ª Ed. Caxias do
Sul, RS: Educs, 2011. 364 p.
14
FRANKLIN, Karen. Direitos humanos na educação: superar os desafios. In: CESCON, E.;
NODARI, P.C. (org) Filosofia, ética e educação: por uma cultura da paz. São Paulo:
Paulinas, 2011. – (Coleção philosophica). p. 373-400.
MANIFESTO 2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência
Fonte: http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Filosofia_da_Educacao/Trabalho/01_57_56_272-7499-1-PB.pdf
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