I Seminário de Educação da Paz: Anais


 
 
 
EDUCAÇÃO PARA A PAZ, EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, FORMAÇAO DOCENTE: ENTRE APLAUSOS E CETICISMOS

Solange Martins Oliveira Magalhães1

RESUMO: Nos discursos pedagógicos há uma ênfase recorrente na necessidade de iniciação dos jovens no campo de práticas e conhecimentos relativos aos valores coletivos vinculados à democracia, aos direitos humanos e a Cultura de Paz. Em resposta a essa urgência relacionamos a proposta da Educação em Direitos Humanos (EDH) e a Educação para Paz (EP) aspirando uma educação libertadora, cujo processo formador almeje a melhoria permanente das condições de trabalho e, quem sabe, ajudar o professor a intervir na realidade escolar para alterar os dados estatísticos alarmantes em relação a violência escolar. Apresentamos uma prática pedagógica que foi pautada no conteúdo do Plano Nacional de EDH, articulada a Declaração Universal de Direitos Humanos. Essa prática foi desenvolvida com estudantes do curso de especialização em Direitos Humanos, Instituto Dominicano de Justiça e Paz do Brasil, Comissão de Justiça e Paz. O objetivo principal foi promover uma discussão que ajudasse na construção e valorização de uma cultura voltada para a paz e respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos. Educação para paz. Formação de professores.

O campo de estudos sobre professores(as) tem crescido quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que os problemas evoluem, há maior preocupação em ampliar esses estudos, aumentando, consideravelmente, a literatura de pesquisa que tem associado o professor a várias temáticas emergentes. Por outro lado também é possível observarmos que esses estudos se articulam ao debate que versa sobre as reformas educacionais implementadas no país, sob as influências dos organismos internacionais, entendendo que elas (as reformas) visivelmente promoveram uma nova arquitetura para nossos sistemas de ensino e, consequentemente, para a formação de professores.

Um marco importante das transformações que envolveram tanto a educação quanto a formação de professores, foram os anos 90, ou anos da Década da Educação, quando as políticas públicas brasileiras implementadas articulavam-se à globalização econômica, cujo objetivo era desenvolver uma também nova atmosfera de trabalho, que favorecesse a cultura do desempenho em resposta aos problemas colocados pela crise do desenvolvimento do capitalismo, desde os anos 70. Neste cenário, o setor educacional foi (re)edificado, a partir de critérios de eficiência e eficácia, em consonância com os interesses do mercado que alicerçaram mudanças de várias ordens nos sistemas de ensino.

Em função de sua importância e centralidade para a adequação do projeto neoliberal proposto, a educação passou a ser objeto de discussões, programas e projetos levados a cabo por órgãos multilaterais de financiamento, como as agências do Banco Mundial (BID e BIRD), e por órgãos voltados para a cooperação técnica como o UNICEF e a UNESCO (CURY, 2002). Esses organismos financiaram (ainda financiam) e definiram diretrizes que orientaram as políticas e os projetos educacionais, não só no Brasil, mas em diferentes partes do mundo.

Dentre os critérios que fundamentam as orientações do Banco Mundial para a educação destacaram-se: a elaboração de currículos sintonizados com as demandas do mercado; centralidade para a educação básica, com a redução de gastos com o ensino superior; ênfase na avaliação do ensino em termos dos produtos da aprendizagem e do valor custo/benefício; centralidade da formação docente em serviço em detrimento da formação inicial; autonomia das escolas com o maior envolvimento das famílias; desenvolvimento de políticas compensatórias voltadas para os portadores de necessidades especiais e para as minorias culturais (TORRES, 1996). Esses critérios demonstraram que a qualidade da educação passou a ser uma das preocupações centrais das políticas educacionais neoliberais, assim como dos diferentes setores governamentais e empresariais. A educação adquiriu importância estratégica, como condição para o aprimoramento do processo de acumulação de riquezas e aprofundamento do capitalismo.

Entretanto, qualidade para o Banco Mundial, principal mentor intelectual do processo, localizava-se no rendimento escolar do aluno, assim com no resultado de determinados “insumos” que intervêm na escolaridade, entre os quais se encontrava a melhoria do professor(a). As referências e as bases para as políticas de formação de professores fizeram-se notar pelas mudanças que propuseram principalmente no que se referia à transformação do fazer pedagógico e seus objetivos.

No rol das habilidades exigidas dos professores, agora concebidos como insumos, estava manter a qualidade da educação, que passava a ser sinônimo de eficiência, traduzida por resultados estatísticos sobre números de matrículas, evasão, aprovação dos estudantes, bem como, diminuição da violência escolar, aumento da paz social e suposta defesa dos direitos humanos e sociais.

Estabeleceram-se regras de adequação do currículo às exigências da globalização, mediante a renovação de conteúdos, a capacitação de professores para a mudança, a incorporação de tecnologias teleinformática e a avaliação constante dos resultados. De uma maneira geral, se no processo de redemocratização do Brasil intensificou-se a preocupação com a melhoria da educação, todavia, a qualidade deu-se nos termos apresentados.

As forças aparentemente ocultas que definiram as políticas educacionais, sua origem, objetivo e identidade, sempre foram acompanhados de condicionalidades que funcionaram como verdadeiras algemas. Os competentes, subservientes e zelosos defensores dos interesses do capital, local e/ou internacional, em nome de uma intervenção que deveria ser aceita e consentida, empenharam esforços no sentido da construção e difusão de um consenso comum, no qual o sistema educacional, logo os professores, tinha um papel importante a desempenhar: contribuir sistematicamente para que a população aceitasse e até defendesse as mudanças neoliberais propostas. Portanto, não é por acaso que a maioria dos países, passou (e passa) por reformas educacionais (GENTILLI, 1996).

Em termos de políticas educacionais, podemos resumidamente concluir que na década de 1970 a concepção tecnicista de educação alcançou grande vigor no pensamento educacional, na década de 1980 essa concepção foi criticada e rebatida, mas na década de 1990, ela simplesmente assume nova roupagem que foi aceita e passou a definir novamente o trabalho docente, deliberando um movimento que impôs a escolha entre a educação “com o professor” ou “sem o professor”, ou seja, capacitá-los ou apostar nos textos, na televisão, na tecnologia informática (PNUD, 1999).

As referências e as bases para as políticas de formação de professores da época fizeram-se notar ao proporem mudanças que visavam à transformação do fazer pedagógico, mas essas só fariam sentido ou seriam eficientes se atuassem sobre o aluno, ou sobre seu rendimento escolar. Tal perspectiva não deixou passar despercebida uma “nova problemática” que se fazia presente na mesma época no campo educacional: a questão da violência escolar e as violações dos direitos humanos (CODO, 1999).

A questão da violência e violação dos direitos humanos passa acentuadamente pelo trabalho do professor, segundo Oliveira (2007, p. 356-57), as políticas publicas aumentaram as atividades e responsabilidades para os professores, sem uma contrapartida salarial e condições mais favoráveis de trabalho, eles se viram envolvidos com múltiplas tarefas para as quais nem sempre tiveram um preparo adequado no que se referem ao planejamento do projeto pedagógico e ao relacionamento com a comunidade. Em Martinez (2003, p. 76) temos que “o mercado de trabalho globalizado o assume [o professor] como servidor público e o destina a uma tarefa de manutenção institucional da matrícula escolar e controle do conflito social crescente e ameaçador”. Estávamos na década de 80, presenciava-se o aumento das violências nas escolas, e essa também perpassava o trabalho docente, o professor começava a manifestar sofrimento psíquico, aumentando as demandas por assistência e busca de psiquiátricas e psicológicas, desmorona-se a ideia de que a escola era um espaço que se caracterizava como um espaço protegido, o que obrigou o aumento do debate sobre a questão da violência nas escolas manifestando a preocupação com o que acontecia no contexto escolar.

Desde então, se têm buscado refinar o conceito de violência, considerando a população alvo como os jovens, os professores, a comunidade, e o lugar social da instituição onde a violência ocorria: a escola (CODO, 1999). Paralelamente ao debate sobre o professor e sua prática, as discussões sobre a violência mostraram-se pertinente e a essa discussão somou-se o subseqüente interesse pela implantação de uma Educação para a paz e em direitos humanos, como possível solução para os novos problemas enfrentados pela escola.

Guimarães (2005) afirmou que o esforço de refletir sobre a violência no meio escolar ligou-se, aos poucos, com a introdução da proposta de uma Educação para a Paz e a Educação em Direitos Humanos. No caso da Educação para a paz, o assunto começou a ser tematizado em congressos, seminários, revistas de educação e experimentada em algumas escolas e programas educativos, ao mesmo tempo em que era vista com profundo ceticismo, mas, paradoxalmente, observou-se um movimento em nível mundial que se configurou, sobretudo no século XX, como uma campanha internacional que pretendia refletir sobre as possibilidades ou alternativas aos novos problemas educacionais.

A campanha internacional ligava-se sobretudo à formação de professores assumindo o slogan: “Não há paz sem educação para a paz”, cujos objetivos eram criar reconhecimento público e suporte político para a introdução da educação para a paz em todas as esferas da educação, e promover a formação de professores para que eles pudessem, posteriormente, ensinar pela/para paz (GUIMARÃES, 2005, p.24).

A temática passou a ser considerada no Brasil, embora se deva reconhecer que muito gradativamente foi conquistando espaço, em função do esforço de organizações não-governamentais, como a UNIPAZ, que mantém a Universidade da Paz, em Brasília; pelo Instituto Nacional de Educação Para a Paz (IMPAZ), em Salvador; Educadores para a Paz, em Porto Alegre; o Serpaz/Movimento de Resolução de Conflitos, em São Leopoldo – Rio Grande do Sul, a Rede em Busca da Paz, em Santa Cruz do Sul – Rio Grande do Sul, e hoje através da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), responsável pela articulação interministerial e intersetorial das políticas de promoção e proteção aos Direitos Humanos no Brasil, presenciamos ações, estudos e programas relacionados à educação para paz e direitos humanos.

Na década de 90, a contribuição da UNESCO - Representação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura também foi significativa, além de dar início, no Brasil, a uma série de pesquisas sobre juventude, violência e cidadania mantendo a publicação dos resultados desses estudos (PERALVA, 1997 e 1997; WAISELFISZ, 1998; SPOSITO, 1998; MINAYO, 1999), cujo objetivo foi disseminar e ampliar os conhecimentos e o debate sobre a questão da violência, em parceria com o Ministério da Educação, lançou-se a Convocação Nacional pela Educação para a Paz, na mesma década. Essa fez com que nos diversos níveis governamentais fossem desenvolvidas diferentes iniciativas, tais como o programa federal “Paz nas Escolas” ou, em nível municipal, o Programa de Prevenção à Violência no Meio Escolar, ligado as Secretarias Municipais de Educação.

A UNESCO continuou estimulando diversas pesquisas com o objetivo de agregar novos conhecimentos sobre os temas, a fim de subsidiar a formulação de políticas públicas. Ainda segundo o pensamento da UNESCO, sobretudo no que tange as temáticas violência, Educação para a Paz e Educação em Diretos Humanos, existe uma centralidade na formação de professores. É consenso que as reformas educativas dependiam dos docentes, portanto os esforços deveriam ser dirigidos para a formação do professor e para a melhoria das suas condições de trabalho.

Diante de tantas solicitações, uma política integral para os professores deveria incluir medidas destinadas a formá-los para uma docência com capacidade de maior tolerância e manejo relacional na sala de aula. Para tanto, as reformas na formação inicial deveriam ser destinadas a superar o fosso entre esta e as necessidades dos múltiplos contextos. Neste sentido, as políticas deveriam ser destinadas à atender as exigências do trabalho dos docentes, a formação deveria ser em serviço permanente, melhoria permanente das condições de trabalho e, quem sabe, ajudar o professor a intervir na realidade escolar para alterar os dados estatísticos alarmantes em relação a violência, via Educação para Paz e Direitos Humanos (ESTÊVÃO, 2011).

Entendia-se que a escola não estava conseguindo atuar nos dois mundos – o pedagógico e o relacional dos alunos que residem dentro dela, desencadeando-se uma crise da socialização no seio da escola. Se os professores não fossem capazes de trabalhar as questões da violência, violência escolar, educação para paz e direitos humanos, os alunos perderiam um espaço no qual poderiam construir uma experiência significativa sobre a aprendizagem da tolerância, cidadania, compreensão do limites, passando a construí-la, muitas vezes, fora da própria da escola, ou contra ela, ou dentro dela, mas a despeito dela. O mais agravante, entendemos, é que uma experiência significativa poderia promover os direitos humanos e a paz ou, ao contrário, desestimulá-los (DUBET e MARTUCCELLI, 1995; ESTÊVÃO, 2011).

Educação para a Paz (EP): entendendo conceitos

O século XX colocou definitivamente o problema da paz para a humanidade, seja pela densidade das experiências que testemunhou, holocausto e a bomba atômica, seja pela efetividade do consenso que começou a operar - Declaração Universal dos Direitos Humanos, Carta da Terra, Carta Transdisciplinaridade, fazendo com que os sujeitos se confrontassem com os problemas centrais da civilização.

Entretanto, mesmo com o fim da Guerra fria, como constatou Hobsbawn (1977), não houve a instauração de um período de paz para a humanidade, nos anos que seguiram a 1989 visualizamos várias operações militares que manifestaram o fracasso de uma modernidade que desejava a tolerância, frente a um cem números de guerras étnicas e religiosas.

A humanidade viu-se ameaçada diante de um “risco procedural”, destruidor, que ameaçava a existência humana, frente aos movimentos da indústria bélica, que acabaram por colocar a temática da paz como um dos principais pontos da agenda sócio-política do final do século XX e XXI (APEL, 1994, p. 73).

O desmantelamento dos blocos econômicos provocou um processo de desvelamento da realidade circundante: uma clareza da pobreza e uma tomada de consciência da miséria dos povos. Por outro lado, a cultura global favoreceu a percepção das necessidades mundiais, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento de tecnologias da comunicação possibilitou a integração e a interdependência entre os membros do planeta ampliando o conceito de cidadania. Toma-se, assim, consciência de que a promoção da paz e dos direitos humanos, a resolução dos conflitos armados, a tutela das minorias étnicas e dos imigrantes, a salvaguarda do meio ambiente, combate as epidemias, a luta contra traficantes de droga e de armas, e contra a corrupção político-econômica eram problemas que diziam respeito à comunidade humana como um todo (GUIMARÃES, 2005; BENITES et al, 2011).

Conforme o entendimento de Apel (1994, p.165-166) já se delineava um aspecto que caracteriza uma ética da responsabilidade que mobilizava uma fantasia moral, capaz de “universalizar o amor ao próximo, no sentido de amor aos mais distantes”. Neste sentido, a temática da paz emergiu não apenas como um clamor universal, mas como um campo onde se operava certo consenso, no qual a civilização ocidental exprimia sua idéia de bem comum. Podemos afirmar que especialmente a partir do século XX, as ciências envidaram energias e esforços para refletir profundamente sobre a temática da paz e seus correlatos, da violência e da guerra (LEITE, 2010).

Como exemplo, temos os estudos da antropóloga Mead (1901-1978) que contribuíram para o entendimento da guerra e da violência como construções culturais, a psicologia também trouxe importantes elementos novos para essa compreensão coma as contribuições de Willian James (1842-1910), considerado psicólogo para a paz, que propôs encontrar uma moral que substituísse a da guerra. Com Freud (1856-1939) discutiu-se o instinto de destruição e o instinto de vida, relacionando-os ao crescimento da civilização que trabalha simultaneamente contra a guerra.

Entre os esforços em torno da reflexão filosófica sobre a paz, ainda podemos destacar o alemão Max Scheler (1874-1928), em seu livro “A idéia da paz e os pacifismos”; Maurice Blondel (1861-1949) que publicou “A luta pela civilização e filosofia da paz”; Karl Jaspers (1883-1969) que escreveu “Verdade, liberdade e paz”; Jose Orteza (1883-1955) com o “Quanto ao pacifismo”; assim como: Norbert Elias com o seu “Problema da guerra e as vias para a paz; Agnes Heller e Ferenc Feher com “Sobre o pacifismo”; Jean-Marie Muller com sua reflexão filosófica sobre a não-violência; Hans Hüng com sua proposição ética planetária; Arielle Denis com “Mundializar a paz”, obras que consagraram, depois de 1945, uma ciência para estudar a paz, a guerra e os conflitos, denominada de polemologia para alguns e irenologia por outros, ou, ainda, por seu nome inglês - peace research (pesquisas sobre a paz), o que gerou a criação de uma série de centros de pesquisa em nível universitário e o avanço de estudos sobre a temática, sob a perspectiva plural de diversas ciências.

Houve uma tendência dos estudos sobre a paz se libertarem do domínio dos estudos militares ou sobre a guerra, para ganhar autonomia e abrangência própria. A própria problemática da paz foi sendo circunscrita de forma abrangente, incluindo questões do psiquismo humano, da organização socioeconômica e política e também do plano cultural. Proliferam estudos sobre cultura de violência e cultura de paz, estimulados, como dissemos, especialmente, pela UNESCO.

Com relação à Cultura de paz e sua relação à proposta de uma Educação para a Paz, a expressão do interesse global pela temática relacionou-se à proclamação, por parte da Assembléia das Nações Unidas, do Ano de 2000, como Ano Internacional por uma Cultura de Paz, conforme Resolução 52/125, de 20 de novembro de 1997; e a nomeação da década 2001-2010, como Década Internacional para uma Cultura de Paz e Não-Violência para as Crianças do Mundo, Rresolução 53/25 de 10 de novembro de 1998. E ainda, o I Fórum Social Mundial, em 2003, e o I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, no Convento de Arrábida, em novembro de 1994, em Portugal, onde se formulou a Carta da Transdisciplinaridade que apontava a necessidade de uma compreensão planetária para enfrentar os desafios contemporâneos. Estes são marcos importantes para a construção de caminhos para a Cultura de Paz, e também para a implementação de uma Educação para a Paz. Mesmo que se mostrem como sendo uma exigência indiscutível do nosso tempo, estas propostas ainda enfrentam vários ceticismos. Em pleno século XXI, numa sociedade mundializada como a nossa, o problema fundamental da conservação da paz continua sendo de caráter educativo.

Educação em Direitos Humanos (EDH)2: uma nova proposta?

Por compreender que o problema da paz passa pela educação, nos discursos pedagógicos continua recorrente a ênfase na necessidade de iniciação de jovens no campo de práticas e conhecimentos relativos aos valores coletivos vinculados à democracia e aos direitos humanos (GOUVEIA; CARVALHO, 2011). Mas entendemos que a ação que necessitamos propõe quando falamos em educação em direitos humanos, não se reduz simplesmente a veiculação de um conjunto de concepções teóricas, mas passa pelo compromisso prático a ser traduzido no princípio fundamental de uma educação voltada para a construção de um modo de vida que tenha na cidadania democrática ativa e na busca pela igualdade seus objetivos maiores.

Neste sentido, se faz necessário a reflexão sobre nossas concepções de educação, sociedade, homem, democracia e direitos humanos, aquelas que se estão presentes no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, proposto pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH, por exemplo, traduzem um papel teórico – de natureza filosófica, histórica e até descritiva, assim como um conteúdo programático, que aspiram veicular um programa de ação com condutas guiadas por ideais valorativos que respondem nossas exigências?

O Governo Federal, através do Ministério de Educação e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), lançou o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), em 10 de dezembro de 2003, para ser um instrumento que orientasse e norteasse ações educativas de forma pluridimensional (pública e/ou privada; formal e não formal):

O PNEDH entende os direitos humanos no seu sentido amplo, decorrentes da dignidade do ser humano, abrangendo, entre outros: o direito à vida com qualidade, à saúde, à educação, à moradia, ao lazer, ao meio ambiente saudável, ao saneamento básico, à segurança, ao trabalho e à diversidade cultural. Educar em direitos humanos é fomentar processos de educação formal e não formal, de modo a contribuir para a construção da cidadania, para o conhecimento dos direitos fundamentais, o respeito à pluralidade e à diversidade sexual, étnica, racial, cultural, de gênero e de crenças religiosas (BOCK; GIANFALDONI, 2010, p. 98-99).

Parece-nos que o PNEDH propôs programas e projetos cuja essência visava a compreensão de uma cidadania democrática, ativa e planetária, embasada nos princípios de liberdade, igualdade e diversidade e na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos, mas seu sucesso liga-se novamente, e quase invariavelmente, ao professor(a) e a escola.

Conforme o PNEDH o tema da educação em direitos humanos tratava das questões referentes aos procedimentos pedagógicos, as pautas e instrumentos que possibilitassem uma ação pedagógica libertadora. E ao se falar em uma pedagogia libertadora, relacionamos à formação de uma nova consciência social, à consolidação dos valores que dão sentido ao significado do que são os direitos humanos e ao porque eles dão sentido especial à educação dos cidadãos. Cabe também um novo modelo de Escola que valoriza a criatividade, o sonho, o lúdico, o prazer, a alegria, a sensibilidade, a capacidade humana de indignar-se, de ser crítico, de duvidar.

Uma escola que deixa de negar o diálogo, o saber dos alunos, deixa de desumaniza, começa a viver uma realidade podendo transformá-la. Essa é uma alternativa que nos interessa, a perspectiva de um educar para os direitos humanos liga-se a construção de novos paradigmas de transformação social que têm por base princípios de direitos humanos.

Entendemos que trata-se de uma educação dialógica, problematizadora, que considera os alunos, os professores, que estabelece o diálogo, reconhece o outro, que sabe que o verdadeiro conhecimento é forjado na práxis e no debate democrático, que aceita as diferentes experiências de vida, que faz com que os alunos possam participar refletindo sobre a realidade e atuando sobre ela com o objetivo de transformá-la.

A educação proposta no PNEDH coliga-se à compreensão dos Direitos Humanos, para compreendê-la necessitamos compreender sua historicidade.

Direitos humanos são aqueles direitos comuns a todos, a partir da matriz de direito à vida, sem distinção alguma decorrente de origem geográfica, caracteres do fenótipo (cor da pele, traços do rosto e cabelo), da etnia, nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe social, nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual ou de qualquer tipo de julgamento moral. São aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano (BENEVIDES, 2007, p. 337).

Costuma-se falar, apenas por uma questão didática, dividir estes direitos - direitos civis, direitos políticos, e os direitos coletivos da humanidade, em três gerações de direitos humanos, mas não se trata de gerações no sentido biológico, do que nasce, cresce e morre, mas no sentido histórico, de uma complementaridade, que pode também ser entendida como uma dimensão (ESTÊVÃO, 2011).

Resumidamente, a primeira geração é contemporânea das revoluções burguesas do final do século 18 e de todo o século 19, representa os direitos civis e das liberdades individuais, liberdades consagradas pelo liberalismo, quando o direito do cidadão dirige-se contra a opressão do Estado ou de poderes arbitrários, contra as perseguições políticas e religiosas, a liberdade de viver sem medo. Os direitos da primeira geração dizem respeito ao direito à vida, à segurança, à intimidade, à propriedade, à manifestação, à opção religiosa e a liberdades civis que implicam a obrigação do Estado no respeito à pessoa humana e a garantia de seus direitos (CASSESE, 1991). A segunda geração, que não abrange apenas os indivíduos, mas os grupos sociais, surge no início do século 20 na esteira das lutas operárias e do pensamento socialista na Europa Ocidental, explicitando-se, na prática, nas experiências da social-democracia, para consolidar-se, ao longo do século, nas formas do Estado do Bem Estar Social. Refere-se ao conjunto dos direitos sociais, econômicos e culturais, como os de caráter trabalhista e os de caráter social mais geral, como saúde, educação, habitação, acesso aos bens culturais. A terceira geração inclui os direitos coletivos da humanidade, como direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, ao patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao meio ambiente ecologicamente preservado; são os direitos ditos de solidariedade (BENEVIDES, 2000; CARVALHO, 2004).

A terceira geração de direitos humanos solicita a Educação em Direitos Humanos para consolidar seus objetivos. Em complemento às duas gerações, e os direitos coletivos da humanidade, tais como o direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, aos patrimônios científico, tecnológico e cultural da humanidade e ao meio ambiente ecologicamente preservado.

A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que o período de 1º de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2004 constituiria a Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos. No documento apresentado, a educação em direitos humanos

(...) objetiva a construção de uma cultura universal de direitos humanos através da partilha de conhecimento (...) direcionados ao fortalecimento do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais; ao desenvolvimento completo da personalidade humana e de seu senso de dignidade; à promoção da compreensão, tolerância, igualdade entre os sexos e amizade entre todas as nações, pessoas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e lingüísticos; à capacitação de todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre; à ampliação de atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz (MAIA, 2007, p. 85)

Conforme Benevides (2000, p.12), a Educação em Direitos Humanos mostra-se essencialmente para a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana, entende-se que ela pode ajudar a promover a vivência dos “valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz”. Portanto, os professores, de uma maneira em geral, foram convidados a incorporar aos currículos os objetivos de uma educação em direitos humanos.

No âmbito nacional, além da Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação também refletem esse propósito ao dispor sobre os princípios e fins da educação nacional. No Art. 2º da nossa constituição temos que: A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Por este ângulo, a Educação em Direitos Humanos (EDH) é legitimada, cabe a ela ajudar na formação de uma cultura de respeito à dignidade humana, através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz.

No âmbito internacional, a educação passou a ser entendida como um direito humano reconhecido através do Art. 13 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3 que afirma:

Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Concordam também que a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar um papel útil numa sociedade livre, promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais, étnicos e religiosos, e favorecer as atividades das Nações Unidas para a conservação da paz (BRASIL, 1992).

Na perspectiva da EDH, e do PNEDH, o acesso à Educação deve ser compreendido como condição para a realização dos direitos humanos, ou seja, passa ser a base constitutiva da defesa e constituição dos direitos econômicos, sociais e culturais. Pois bem, por meio da educação o homem pode viver a plenitude de todos os direitos humanos. Entretanto, mesmo que estejamos entre limites e as possibilidades do exercício da cidadania no contexto da globalização, a proposta de uma Educação em, para e pelos Direitos Humanos ainda encontra-se entre aplausos e ceticismos.

Educação para Paz e a formação docente: uma experiência pedagógica com o estudo dos direitos humanos

O ceticismo sobre a importância de uma educação em direitos humanos sempre foi claro, também incide no campo da formação de professores. superá-lo significa encarar alguns problemas que surgem, não raramente, em função das aflições e expectativas vividas pelos próprios professores, geradas pela urgência da solução de problemas bastante concretos e complexos, por vezes sequer solucionáveis no âmbito da escola, cujos efeitos, seguramente, repercutem de forma profunda no trabalho docente.

Assim compreendendo, sem a pretensão de apresentar conclusões, tecemos algumas considerações após desenvolvemos algumas práticas pedagógicas que procuraram implementar a EDH, com vistas a promoção da Cultura de Paz. Essas foram desenvolvidas com um grupo de 50 estudantes, na disciplina Educação e Solidariedade, no Curso de Especialização em Educação e Direitos Humanos, do Instituto Dominicano de Justiça e Paz do Brasil Antônio Montesino.

Os dados que aqui apresentamos compõem ampla pesquisa sobre os referenciais teóricos e o conteúdo programático do PNEDH (2008). Nesta pesquisa utilizamos a metodologia qualitativa e os princípios do estudo de casos. Na atividade utilizou-se os recursos das Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos de Candau (1995).

No planejamento da atividade tomou-se como referência a ementa oficial da disciplina, a partir da qual foram propostas estratégias valendo-se de discussões com os alunos sobre o percurso das atividades. A disciplina aborda temas relacionados à sociedade, a educação, sua historicidade, bem como temáticas sobre a Educação em Direitos Humanos (EDH), Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, 2008), Declaração Universal de Diretos Humanos, e suas possibilidades transformadoras do contexto educacional. A reflexão sobre os direitos humanos e o PNEDH mostrou-se frutífera e relevante para a formação docente.

Após leitura de material teórico, foi proposto ao grupo a realização de discussões ampliadas sobre: efetivação dos direitos humanos no país, direitos humanos e sua relação com preconceitos, racismo, gênero, violência e educação, permitindo perspectivas interativas entre os campos disciplinares, além de revisão e suprimento de eventuais temas a serem abordados. Desta forma, oportunizou-se aos alunos estabelecerem interações e atualizações de seus conhecimentos no campo dos direitos humanos, articulando-os à formação docente e às áreas afins. O processo exigiu diálogo, uma dinâmica aberta, fundada na solidariedade, no questionamento constante e nas reflexões sobre as ações desenvolvidas no/com/fora do grupo.

Na dinâmica procurou-se levar em consideração a pluralidade dos participantes, retratando a possibilidade metodológica integradora proposta pelo Projeto do curso, no qual a formação é concebida como processo de inserção crítica dos sujeitos no universo da cultura, do pensamento, da autonomia, da liberdade, da justiça, da democracia e da solidariedade.

A atividade apresentada pautou-se na leitura e análise de texto retirado do livro Educar para a conexão (SILVA, 2004). Foram dadas as seguintes orientações: leitura, análise e discussão em grupos do texto “carta 23”, encontrada nos muros de um campo de concentração na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. Para Silva (2004), ela foi escrita por alguém que sofreu com a falta de conexão entre os seres humanos. Vejamos o texto:

Prezado Professor: Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e Universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem- se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis (SILVA, 2004, p. 87).

Iniciou-se incentivando debate acerca do conteúdo da carta, suscitando-se a reflexão sobre a vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos, debateu-se no grande grupo, depois o assunto foi debatido novamente em grupos menores e as conclusões a que os pequenos grupos chegaram, foram apresentadas em formas de oficinas pedagógicas de direitos humanos, como proposto por Candau (1995), associadas aos artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos - DUDH4.

A metodologia utilizada teve o objetivo de maximizar a aprendizagem sobre a temática ao trabalhar com atividades que mobilizam, conjuntamente, as várias dimensões humanas (mentais, emocionais, sensíveis, corporais, criativas), tecendo relações tanto horizontais como verticais do conhecimento.

Foram criadas situações de reflexão, capazes de maior envolvimento dos sujeitos na construção de significados. Afirmamos isso, pois, ao optar por uma oficina específica – teatral, musical, cordel, dança e poesia, cada grupo de estudantes esforçou-se para sua realização, tornando o trabalho criativo e prazeroso.

As oficinas, além de apresentarem as reflexões desenvolvidas com a leitura da carta 23, ao serem associadas aos artigos da DUDH, com o apoio nas artes, possibilitaram trabalhar as dimensões estética, corporal, sensível, como uma forma de despertar a sensibilidade e afetividade entre os sujeitos. Estes foram capazes de trabalhar produtivamente em grupo, refletindo criticamente sobre o material proposto, sobre a sua própria prática e suas ações.

Após as apresentações das oficinas, houve uma plenária geral, na qual os estudantes relataram:

Nunca havia percebido a dor do outro, a oficina teatro me colocou neste lugar. Faltam-me palavras para expressar a angústia que nos invade o peito diante da expressão de tanta dor [...]. Talvez as palavras não dêem conta de expressar nossa tristeza e indignação! (sujeito 4).

[...] é inconcebível que essas coisas aconteçam em qualquer sociedade. As pessoas têm dificuldade em lidar com o melhor do ser humano que é ser um “ser humano” [...] precisamos militar em prol dos direitos humanos sempre. Talvez a Educação em Direitos Humanos ajude em curto prazo [...] (sujeito 45).

Segundo Demo (1999), uma aprendizagem significativa acontece quando os estudantes reconstroem o conhecimento com qualidade formal e política, o que o leva à emancipação e à conquista de sua autonomia pessoal e profissional. A atividade em si, leitura, análise e discussão do conteúdo, mais a elaboração das oficinas, parece ter promovido a capacidade de perceber as consequências pessoais e sociais das escolhas, além da imperiosa necessidade de se desenvolver o senso de responsabilidade social e coletiva.

Após a oficina de canto, na qual o grupo escolheu a música “vida de gado” do Zé Ramalho, percebo que estamos patinando no vício do ruim, patinamos na idéia da possibilidade de uma desconstrução do sistema, mas nos adequamos. Será comodismo? Porque não instituímos o PNEDH? A sociedade não seria melhor? (sujeito 3).

A complexidade e a abrangência da tarefa formadora, potencialmente transformadora, implica colaborar para que novas reflexões sejam propostas para os sujeitos, acionando sua capacidade autoquestionadora e reflexiva.

Com base nesse entendimento, é objetivo da EDH, assim como da Educação para Paz, a formação de sujeitos capazes de julgar, escolher, tomar decisões, cidadãos responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também que os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos.

Devemos ser militantes em prol dos Direitos Humanos, pois precisamos de experiências de conciliação, cooperativas e solidárias. Experiências pautadas no princípio ético, acima dos interesses pessoais, próximas do bem comum e da manutenção da vida [...] (sujeito 17).

Paulo Freire estava certo: o trabalho de educação é antes de tudo um ato de amor, presente em cada palavra, em cada gesto, em cada realização. EDH pode ter essa expressão [...] (sujeito 19).

Os alunos revelaram como estava interessante e agradável a apresentação das oficinas, em função da turma ter realizado algo novo e diferente, agregaram conhecimentos a partir da suas experiências de vida, além de sentiram-se livres e motivados na atividade de elaborar e comunicar suas reflexões associadas aos direitos humanos. Eles assim relataram:

[...] com esta atividade fui tocado no meu ponto fraco, adoro dança, participar da oficina de dança foi ótimo. Minha oficina associou dança, beleza e leveza com a solidariedade. Aprendi que poderíamos através do corpo ressignificar as coisas fazendo com que a vida tenha mais sentido, prazer e dignidade [...] (sujeito 4).

[...] nunca me imaginei trabalhando o corpo. Nunca trabalhei o corpo dos meus alunos. Achei fantástica a oficina. Aprendi que quem educa, educa o corpo do outro [...] adorei, mas ver os colegas se esforçando na elaboração das oficinas, foi o melhor, aprendi muito e desenvolvi o desejo de superar minhas dificuldades, assim como promover esse entendimento em meus alunos. Gostaria de torná-los sensíveis a vida [...] (sujeito 40).

É importante destacar os movimentos de resistências que foram trabalhados através do diálogo e de negociações. Analisamos que as resistências enfrentadas durante o processo serviram para ressignificar o aprender a conviver. Percebemos a construção de um pensar mobilizador, inclusive de emoções e da corporeidade dos sujeitos, conforme depoimento a seguir:

Precisamos de parâmetros que possam nos auxiliar, tanto a elaboração de políticas públicas mais consistentes que sejam capazes de gerar práticas sociais que impeçam essas posturas apresentadas na carta 23, e que gere ações mais comprometidas com a responsabilidade social [...], Se somos seres reflexivos, criativos, afetivos e sensíveis o suficiente para apresentar em forma de oficinas o que elaboramos em nosso interior, também o somos para implementar novas formas de ser no mundo, de entender a condição humana [...] (sujeito 31).

A atividade pedagógica também modificou a tradição da sala de aula constantemente baseada no baixo nível de participação dos alunos. Mudou a ênfase das atividades solitárias ao promover as bases da comunicação livre e plural. Podemos observar que a autonomia é inerente à reflexão e consequente auto-organização dos sujeitos. Entendemos que atividade mostrou-se significativa, formativa e transformadora.

Algumas considerações

Em última análise, em que pese os aplausos ou o ceticismo em relação à proposta de uma EP ou a EDH, sobretudo no âmbito da formação de professores, a experiência nos obriga refletir sobre algumas dificuldades, a primeira liga-se a superação de expectativas de que um novo plano garanta o êxito da ação educativa, que seja, uma proposta messiânica que resolver todos os problemas da escola. A implantação dos planos dependem do professor (mas não só), de sua prática acadêmica que está condicionada pelas circunstâncias históricas que marcam a sociedade da qual ele faz parte. Depende da sua capacidade de ação e a reflexão sobre a realidade vinculadas ao conhecimento, à consciência dessa realidade e à possibilidade de transformá-la.

Superando-se a ideia de que a melhoria do ensino depende apenas do professor, embora envolva sempre um processo de autoformação, de compromisso e motivação, reconhecemos que abrange também envolvimento institucional e, neste sentido, o sucesso um novo plano, como PNEDH ou de uma Educação para a Paz, não dependerá simplesmente de qualidades individuais de professores, mas delas e de características da cultura institucional, de formas de intervenção na organização institucional e difusão de conceitos e novos valores que inspirem reflexão critica capaz de gerar práxis e, portanto, transformação.

Ainda parece-nos necessário a superação de discursos politicamente corretos, o contato com novas propostas geram lições bem decoradas, mas tão distanciadas do conhecimento que dá autoridade para a construção de uma nova realidade. A experiência vivida, como aquela nas oficinas em Direitos Humanos, geraram discussões teóricas, e parecem ter ajudado os alunos a superarem a incorporação mecânica de valores, ao contrário, percebemos a reflexão e a troca de experiências de vida. Dessa forma, como as oficinas trouxeram conteúdos propostos pelos alunos, foi possível aliar uma formação teórica e conceitual à discussão de formas de intervenção prática concebidas aos problemas cotidianos. Gera-se uma metodologia pautada em valores éticos, buscando-se diferentes soluções práticas para problemas específicos no campo educacional, que resultassem no respeito à autonomia do trabalho docente.

A abertura para um trabalho conjunto vivenciado pelo grupo foi um aspecto muito positivo, necessita ser amplamente incentivada nos contextos formativos. Fica cada vez mais patente a necessidade de que a formação de professores integre de forma crescente aportes como as propostas do PNEDH e da EP, sua prática na formação de professores parece repercutir positivamente na construção de uma nova ética, uma nova consciência social, solidária, que se traduza em práticas sócio-políticas transformadoras, reforçando e ampliando princípios humanistas e posturas democráticas que consolidem os espaços de liberdade, de tolerância, e isso é atualmente muito desejável.

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1 Doutora em Educação, Psicóloga, Professora dos cursos de Licenciaturas e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás. E-mail solufg@hotmail.com
2 Programa Nacional de Direitos Humanos, disponível na Internet em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/spddh/pnedh.pdf acesso setembro de 2011.
4 A Declaração Universal de Direitos Humanos pode ser encontrada na Internet em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

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Os Diferentes Olhares sobre Cultura da Paz: pesquisas e epistemologias
Nadia Maria Bádue Freire
Resumo: O artigo apresenta o conceito de paz e sua universalidade, bem como estudos e pesquisas que vêm sendo desenvolvidos no sentido de se encontrarem caminhos mais seguros, em que se possa agir com maior coerência no domínio de se educar para a paz. Tem como objetivo refletir sobre as relações entre pesquisas desenvolvidas sobre a Educação para a Paz, a Cultura de Paz, a Educação para a Paz em Paulo Freire, os estudos desenvolvidos pelo Geepaz (Grupo de Estudos “Educação para a Paz e Tolerância”, do Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de Educação/UNICAMP), enquanto resultado da tese de doutorado de Nadia Freire (2004) sobre a Educação para a Paz segundo a psicologia genética de Jean Piaget. Os resultados apontam que embora Paulo Freire relacione a Educação para a Paz a uma dimensão de emancipação, onde a injustiça social não pode ser tolerada, ao mesmo tempo, aponta a tolerância como valor que emancipa. Ao esclarecer o conceito da tolerância necessária à Educação para a Paz freireana, o artigo se pauta na questão da justiça social e abre possibilidades de articulação da Educação para a Paz fundamentada na epistemologia desenvolvimentista de Piaget, segundo a qual a paz e a tolerância não são dadas pelo mero ensino verbal, mas vão sendo constituídas ao longo de reflexões sobre temas e sobre experiências em que ambas são ou foram colocadas em jogo. A Educação para a paz verdadeira torna claras as buscas pela verdade, pela justiça social que emancipa e pela compreensão do outro que aproxima, mas não permite a permissividade que torna opaca a ideia da tolerância manifesta como virtude da paz.
Palavras-chave: Educação para a Paz. Justiça Social. Tolerância. Psicologia Genética. Educação emancipadora. Desenvolvimento Humano.
A Educação para a Paz é um saber necessário ao desenvolvimento humano e social e tornou-se, nos últimos tempos, uma preocupação não apenas dos educadores formais, ligados à escola, mas de toda pessoa que participa efetivamente das ações e das reflexões com objetivo de desenvolvimento humano.
Desta forma, estudos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos no sentido de se encontrarem caminhos mais seguros, em que se possa agir com maior coerência no domínio de se educar para a paz. O objetivo do presente artigo é refletir sobre o próprio conceito de paz, bem como apresentar algumas das pesquisas desenvolvidas sobre a Cultura de Paz, a Educação para a Paz em Paulo Freire e sobre os estudos desenvolvidos pelo Grupo de Estudos “Educação para a Paz e Tolerância” (GEEPAZ), criado a partir dos resultados da tese de doutorado de Nadia M. B. Freire (2004) sobre a Educação para a Paz segundo a psicologia genética de Jean Piaget.
Como o tema do presente artigo aborda a questão epistemológica, cabe lembrar que os trabalhos do LPG (Laboratório de Psicologia Genética) fundamentam-se na Epistemologia Genética de Jean Piaget – que vê a epistemologia como uma disciplina autônoma que explica, analisa como ocorre o conhecimento científico – sendo que a explicação da Epistemologia Genética criada por Jean Piaget apoia-se nas explicações dos sistemas biológicos.
Se considerarmos a epistemologia como ramo da filosofia, que tem como um dos pilares a universalidade, pode-se afirmar que diferentes epistemologias, cada uma tendo por base seus fundamentos – explicam, cada uma de acordo com seus pressupostos filosóficos, a Educação para a Paz – por ter a paz um caráter universal: afinal, todas as pessoas e todas as nações desejam paz, que é necessária à sobrevivência da espécie humana e do próprio planeta.
Neste artigo, vamos ver a epistemologia genética piagetiana que surgiu em oposição ao empirismo fundado unicamente na observação fenomênica. Para Piaget, o conhecimento científico não é produto apenas da observação, mas é um processo evolutivo em espiral, construído nas trocas entre o meio interno e externo, por meio dos processos de assimilação, acomodação, adaptação, reequilibração.
O conceito de paz aqui considerado relaciona-se ao conceito de tolerância, ambos em seu sentido de universalidade (por serem necessárias à sobrevivência da espécie humana), de móbeis de conduta nas relações internacionais e interpessoais, que vê a paz como permeando a vida, em meio a situações de conflito e violência. Acreditar que a paz desejável repousa na ausência de conflitos é negar o valor da paz, pois tal ausência é utópica e faz da Educação para a Paz também uma outra utopia, desta vez pedagógica, cujo mal à educação pode ser enorme.
Embora o termo paz no dicionário Houaiss (2004, p. 2158) designe “ausência de problemas, de violência” ou “nação que não está em guerra”, neste artigo reafirmamos nossa ideia de Educação para a Paz: é um processo dinâmico que busca resolver os conflitos tendo como fundamento a defesa e a proteção de valores como justiça, liberdade, o que por si só já se torna inspirador de atitudes e de reações sem violência.
A tolerância relacionada à Educação para a Paz nega a permissividade, a subserviência e ensina a indignar-se diante da exclusão tomando atitudes não violentas que possibilitem a emancipação social. Nessa seara, estão os estudos sobre psicologia moral, incluindo-se a educação em valores, a educação dos sentimentos, a linguagem do professor, a construção do ambiente democrático, a discussão sobre o ensino verbal de valores, o ensino transversal, com fundamentos na Psicologia Genética – bem como o conceito freireano que se aproxima da realidade nacional e clama por justiça social. Aliás, Sáez (2004), já anunciou, em suas belas “Dez Propostas para uma Pedagogia da Paz” que educar para a paz é educar para o conflito. No mesmo texto, expõe o conceito de paz:
Nossa concepção de paz não se refere a uma situação estática de não guerra ou não violência explícita, mas a um processo dinâmico que busca os maiores níveis de justiça e liberdade, tanto para as pessoas individualmente quanto para as sociedades e culturas nas quais nós, os seres humanos, vivemos: a paz não é a ausência de guerra, e sim a presença de justiça.
Mais recentemente, pesquisas desenvolvidas na perspectiva da Educação para a Paz apontam resultados que impulsionam outros pesquisadores a continuarem seus estudos. Dentre eles, citamos:
1998: Educação para a Paz, Cooperação e capacidade de se colocar no lugar do outro, desenvolvida com alunos do curso de Odontologia, por Nádia Maria Bádue Freire.
2000: Tolerância e seus limites: um olhar latino-americano sobre a diversidade e desigualdade, por Clodoaldo Meneghello Cardoso, UNESP.
2003: A Educação para a Paz na crise metafísica: sentidos, tensões e dilemas, por Padre Marcelo Rezende Guimarães, da PUC do RS.
2004: Educação para a Paz: um estudo psicogenético sobre a tolerância, por Nádia Maria Bádue Freire, Unicamp.
2011: A construção da paz como meta do processo educativo, por Lucia Helena de Carvalho, Unicamp.
Além das citadas, desde 2005, a partir de sua criação, o Geepaz vem desenvolvendo estudos e pesquisas sobre Educação para a Paz e Tolerância na perspectiva da epistemologia genética evolutiva, com o método dialético piagetiano, tais como Inclusão Social, Desarmamento, Estudos de Caso, que considerando o conflito enquanto fonte de desequilíbrio e decorrente reequilibração, promove desenvolvimento. O Geepaz tem como coordenadora a professora Dra. Nádia Maria Bádue Freire, e como presidente, a professora Dra. Orly Zucatto Mantovani de Assis. Hoje, nas pesquisas divulgadas pela UNESCO, dimensiona-se e se documenta, com ênfase em relatos de jovens, seus familiares, membros das comunidades em que eles e elas vivem e da escola, situações de exclusões socioeconômicas e de violências. Quanto ao desemprego, à exclusão social, à violência e à intolerância, a UNESCO mostra que a violência tende, por sua extensão e constância, a ser banalizada, a constituir-se em parte de nossos tempos. Tais pesquisas indicam que existe atualmente no Brasil, um grande número de jovens entre 15 a 24 anos, que são vítimas ou que estão envolvidos em casos diversos de violência e que enfrentam dificuldades específicas para obter trabalho - a questão da experiência e o primeiro emprego - e que se encontra em situação de risco social e pobreza. São jovens que vivem, em seu cotidiano, os efeitos da exclusão social que se traduz também por exclusão quanto ao acesso à cultura, ao lazer, ao esporte, pela não disponibilidade, em suas comunidades, de equipamentos de diversão e de cultivo artístico-cultural. Talentos são abortados, gerando frustrações e o empobrecimento cultural da nação. Valores que reproduzem violências, discriminações e intolerâncias envolvem, por outro lado, os jovens em um círculo perverso em que eles próprios passam em muitos casos, a serem agentes de uma cultura que banaliza vulgaridades, violências, discriminações contra as mulheres, os negros, os índios, os pobres e compactuam com autoritarismos.
Instituições governamentais e diversas entidades da sociedade civil vêm lidando com tais situações por meio de propostas criativas, construindo-se espaços alternativos de estimulo à criatividade, à participação, à autoestima, à formação artística e cultural, promovendo formação em temas de cidadania, oferecendo alternativas de ocupação do tempo e contribuindo para uma massa crítica à cultura e às práticas de violência. Em muitas dessas experiências se resgatam sentidos de direitos humanos, facilitando meios de expressão e de verbalização, pelos jovens, dos sentimentos de indignação, protesto e afirmação positiva de suas identidades, no sentido emancipatório. Além disso, utilizando o poder agregador do lúdico, seja na forma de arte, esporte ou cultura, investe-se em outra forma de sociabilidade entre os jovens e entre gerações, evitando o isolamento social dos jovens e estigmas sociais contra culturas juvenis.
Também as universidades têm se destacado em estudos e pesquisas sobre o desenvolvimento moral e afetivo, além do intelectual das crianças, com vistas à Educação para a Paz.
Pesquisa de N.M.B. Freire (2004) sobre Educação para a Paz na perspectiva psicogenética mostra que a paz é construída e que é produto de “saber resolver os conflitos por meios não violentos”, sendo que o “saber conversar” foi a categoria de maior relevância nos resultados obtidos na pesquisa. A análise de como ocorrem “as conversas” apontadas demonstra que o “saber conversar” está relacionado às fases do desenvolvimento dos sujeitos da pesquisa diante das respostas apresentadas pelos sujeitos da pesquisa sobre “o que é mais certo fazer diante de determinada situação de violência (roubo, agressão do mais forte em relação ao mais fraco, mentira, humilhação, exclusão social)”. Desta forma, crianças pequenas, heterônomas, pré-operatórias, acham que diante de alguma violência, o mais certo é conversar, mas essa conversa é ainda produto de aprendizagem social a partir da convivência com pais e professores que ensinam que, diante de um conflito, “bater não pode, tem que conversar”. Devido à sua condição pré-operatória, as crianças pequenas não conseguem justificar o motivo pelo qual “conversar” é a atitude mais correta. Já os maiores, na semi-autonomia moral (entre 9 e 11 anos de idade), argumentam que o mais certo, diante de alguma violência, é o professor (ou o pai, ou a mãe) conversar com o agressor e essa conversa gira em torno de passar lições de moral; os mais velhos, entre 11 e 15 anos, afirmam que conversar é o mais certo porque assim podem se explicar, se entender e acreditam que, se necessário, deve-se segurar coercitivamente o agressor para impedi-lo de continuar agredindo, mas para defender a vítima e não para vingar-se do agressor. As respostas demonstram que existe uma relação direta entre os tipos de conversas apontadas e o desenvolvimento moral dos sujeitos participantes da pesquisa. Tal desenvolvimento é provocado pelas trocas sociais que ocorrem em ambiente de respeito mútuo e cooperação, por oposição a ambiente coercitivo, de respeito unilateral.
Mesmo hoje, apesar de estudos e de experiências exitosas nesse campo, ainda parece haver uma mística em torno da Educação para a Paz, que a torna, para alguns, uma utopia, portanto, inatingível (daí associada à ideia da “miopização” das pessoas envolvidas) já que o discurso da Educação para a Paz nem sempre é interpretado em sua objetividade e amplitude; por isso, é considerado algumas vezes como ferramenta que não transforma, não emancipa - e que ajuda a perpetuar a injustiça social, as desigualdades, a intolerância e a própria permissividade. Daí a importância de vermos, ao lado das epistemologias, as ideias de Paulo Freire sobre a Educação para a Paz, bem como as inspiradas em Jean Piaget, em seu artigo de 1934: “É possível uma Educação para a Paz?”
Iniciemos com o fato de ser a Educação para a Paz, principalmente após as duas Guerras Mundiais, um valor universal no sentido que é uma virtude desejável por todos, por todas as nações, já que é condição para a manutenção da própria vida. Mesmo aqueles que colocam a liberdade acima da vida, ou a luta por seus ideais, por sua cultura, acima da vida – desejam viver em paz.
Para ilustrar essa ideia, um exemplo é o Prêmio Nobel da Paz dado a cada ano a representantes de nações de diferentes posições políticas e ideológicas. O que une essas pessoas é o trabalho comum em prol da Paz, sua intenção e suas ações. Ao todo, foram 124 prêmios, sendo que o primeiro foi no ano de 1901, ao fundador da Cruz Vermelha, Jean Henri Dunant (Suíça). O CICV (Comitê Internacinal da Cruz Vermelha) afirma manter caráter neutro e independente, pois apenas sendo livre para atuar de forma independente em relação a qualquer governo ou a qualquer outra autoridade, tem condições para atender aos interesses das vítimas dos conflitos, que constituem o centro da sua missão humanitária. Portanto, a aspiração pela paz não é desta ou daquela ideologia. É uma necessidade que deve permear toda organização humana.
Para que, na escola, haja coerência com os princípios aqui observados, as relações devem estar revestidas de respeito mútuo, de reciprocidade, de democracia e de justiça social. Se na democracia há a participação de muitos, incluindo-se supervisores, direção, coordenação, pessoal técnico, professores, funcionários, pais, comunidade em que a escola está inserida, bem como os responsáveis, em níveis municipal, estadual e nacional – a busca pela justiça social está pautada no equilíbrio dos valores da dignidade humana. Todos se tornam responsáveis pela construção da cidadania. Deixou-se de lado a ideia de que apenas são responsáveis pela Educação das crianças e dos jovens, as autoridades escolares. Embora a própria legislação educacional aponte que Educação é dever do Estado e da família, podemos dizer que vivemos um momento de busca de uma responsabilidade difusa, em que outras instâncias se debruçam sobre o tema em Conferências, Encontros e Congressos em que são criadas oportunidades para amplos debates, exposições de experiências, busca de novas alternativas de trabalho, são elaboradas Cartas e Declarações sobre os mais variados temas, principalmente no combate à violência. Trata-se, portanto, de uma visão sistêmica da educação, em que as redes envolvidas se mantêm, mas inter-relacionadas de tal forma que quando uma entra em crise, todas as outras sofrem as consequências. Há necessidade, portanto, na democracia em que desejamos viver, de que as escolhas se tornem mais e mais responsáveis. Tudo o que acontece no global interfere diretamente no local, no individual.
            Sabemos que existem muitos participantes que se colocam contra a ideia de que outros setores intervenham no setor educacional público, argumentando que é função do Estado e que tal ingerência pode fazer com que o público se acomode ainda mais e que os prejuízos sejam ainda maiores. Suas exigências são, por exemplo, que o setor público contrate mais professores e técnicos, criando empregos que diminuam as falhas educacionais – e não que sejam sanadas por programas que, por serem “jogados” de forma autoritária, sem um planejamento de implementação e debates, acabam por não atingirem seus objetivos e além de falharem quanto à Educação para a Paz, banalizam-na e “miopizam” os envolvidos com seu belo discurso e apenas perpetuam as injustiças, as desigualdades.
Embora tais discussões devam ser travadas e sejam necessárias para o desenvolvimento da democracia – é bem verdade que as escolas em que os pais e a comunidade participam estão sendo mais valorizadas, melhor cuidadas, menos depredadas, menos violentadas. Inclusive, os que defendem essa ideia, ressaltam que antes de cada ação haja um preparo, reuniões em que as pessoas falem, digam o que pensam, discutam, contribuam, debatam, enfim participem democraticamente. O exercício da cidadania não deixa de ser o exercício da tolerância ao debaterem, ao se esforçarem em ouvir ideias diferentes das suas próprias, ao se colocarem no lugar do outro, ao se calarem para permitir que o outro fale, ao não se calarem indiferentes diante de propostas diferentes ou contrárias às suas, ao se mostrarem dispostos a ouvir, a falar, a debater, a conversar e a dialogar.
Neste contexto, Paulo Freire dá excelente contribuição e exemplo da tolerância necessária à Educação para a Paz. Sua universalidade indica devermos ultrapassar a visão parcial da Educação para a Paz e da tolerância, correndo o risco de torná-las opacas e as pessoas que nelas creem, míopes, na voz do próprio Paulo Freire (2006).
 
Qual tolerância é necessária à Educação para a Paz freireana? Como se relacionam tolerância e Educação para a Paz em Paulo Freire? Para Freire,
[...] a paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de Educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas (2006, pág.387).
A tolerância é virtude, é verdadeira – quando relacionada à conquista ou à manutenção da paz nas relações, sejam elas internacionais ou interpessoais. Nunca como indulgência, ou condescendência – um certo favor que o tolerante faz ao tolerado, onde a pessoa tolerante é “bondosa” e “perdoa” a inferioridade do outro, num tipo de “tolerância” alienada e alienante que obstrui a Educação para a Paz. Na verdadeira tolerância “não há discursos ideológicos, explícitos ou ocultos, de sujeitos que, julgando-se superiores aos outros, lhes deixam claro ou insinuam o favor que lhes fazem por tolerá-los” (P. FREIRE, 2004, pág. 24).
O exemplo apontado pelo autor da violência cometida contra Galdino de Jesus, o índio pataxó, assassinado por chamas em todo seu corpo, mostra suas dores e humilhação, testemunhas da intolerância gratuita. Enfim, são tantos os exemplos envolvendo violações a direitos como desigualdade social, preconceito, abandono, desemprego, exclusão, educação, saúde, meio ambiente, economia - englobados na mais dura realidade da injustiça social.
Se diante do “diferente” a tolerância é universal, diante da injustiça social, a tolerância requer limites. Afinal, como calar-se diante de situações e atos violentos, que humilham, coagem, destroem? Para defender a justiça e a tolerância dos intolerantes, é importante refletir sobre a necessidade dos limites à tolerância. Tais limites são considerados apenas como último recurso a ser utilizado na defesa de valores que estão sendo colocados em risco, como a justiça ou a própria tolerância. Aqui, a violência é considerada como toda e qualquer ação no sentido de conter uma outra violência. Trata-se de uma violência, porém, que tem por objetivo a proteção, a defesa, e não o revide, a vingança.
Piaget (1934/1998) aponta que a Educação para a Paz é possível desde que não se tenha como objetivo uniformizar os valores culturais dos países, das pessoas. Propõe que “nenhuma das ideologias contemporâneas é, em princípio, contraditória com a ideia de paz” já que países democráticos se fundamentam sobre princípios cuja compreensão é facilmente relacionada à democracia, enquanto países de governos autoritários têm como inimigo a revolução interna e temem que por ela, sua nacionalidade possa desmoronar. Para nosso autor, a Educação para a Paz deveria enxertar-se na própria educação nacional, segundo o ponto de vista de cada país. Trata-se de um convite para “compreender os pontos de vista do adversário, sem subestimá-los e sem abandonar o seu próprio”[...] (1998, pág.133). Sem isso, o isolamento será fatal – e “todos sabemos para onde conduz o isolamento num mundo onde tudo está inter-relacionado econômica, política e espiritualmente”. Compreender o outro torna-se necessário no contexto da Educação para a Paz pois é uma capacidade evolutiva e à medida em que nos separamos de nossas ideias falsas, preconcebidas com relação ao outro, ganhamos uma nova atitude de reciprocidade que liberta do egocentrismo inicial. Para isso, embora importante, não basta passar aulas inteiras com ensino verbal sobre os problemas que atingem a paz nas relações interpessoais e internacionais. Requer um trabalho de reflexão, tomadas de consciência. Não é utópico procurar manter as consciências particulares, não se trata de formar uma consciência universal que reprima as consciências particulares, tampouco se trata de colar mentalidades umas sobre as outras, dominando-as e generalizando-as. O método proposto por Piaget consiste em “criar em cada pessoa um método de compreensão e de reciprocidade”. Assim se expressa: “que cada um, sem abandonar seu próprio ponto de vista e sem procurar suprimir suas crenças e sentimentos [...] aprenda a se situar no conjunto dos outros homens” (1998, pág.135).
Vemos aí uma teoria que se propõe processual, passando por etapas de desenvolvimento. A capacidade de se colocar no lugar do outro apresenta características em cada uma das 5 fases propostas por Selman (1989), do egocentrismo ao altruísmo, a partir do referencial piagetiano que fundamentou as pesquisas de Mestrado e de Doutorado sobre Educação Para a Paz de Freire (1998 e 2004, respectivamente) cujos resultados reforçam as relações entre as ideias de Piaget e Freire quanto à Educação para a Paz: a emancipação freireana articula-se à compreensão piagetiana no fato de haver alguns pontos de intersecção: ambos buscam o diálogo como forma não violenta de resolver conflitos; a reciprocidade, caminho para a justiça social; ambos refutam a ideia de uma Educação que “miopiza” os envolvidos por meio do ensino verbal/educação bancária. Enquanto P. Freire (2006) propõe que a busca da verdade ocorra pela emancipação, Piaget ensina que a verdade nunca se encontra pronta, mas é elaborada penosamente, graças à própria coordenação dessas perspectivas. Há muitos e diferentes olhares para a Educação para a Paz – mas só a conseguiremos na medida em que, em vez de fecharmos os olhos aos pontos com os quais não concordamos, procuremos compreender suas motivações, seus interesses, seus valores – para podermos sopesá-los, conhecê-los, compreendê-los – o que nos fará concordar ou discordar, negar algumas vezes – mas não com violência. Pelo debate conversamos, dialogamos, toleramos, aceitamos, compreendemos e defendemos nossas ideias e valores por meios muito mais humanizados e não violentos, pelo diálogo, argumentação, abertura de espírito. Esta é a proposta da Educação para a Paz que desejamos: difícil, mas possível.
Para isso, é preciso:
Desenvolvimento Intelectual: o conhecimento dos conceitos apresentados;
Desenvolvimento Afetivo: o desejo de fazer, de buscar a justiça e a paz nas relações;
Desenvolvimento Moral: o desejo de fazer o que é justo, de levar em conta os desejos e as necessidades do outro e não apenas o seu próprio antes de tomar uma decisão.
Referências
FREIRE, Ana Maria Araújo de. Educação para a paz segundo Paulo Freire. In Educação (Revista.) Porto Alegre, RS: no. 2, p. 387-393, Maio/Ago. 2006.
FREIRE, Nadia Maria Badue. Educação para a Paz: um estudo sociomoral realizado na sala de aula da Universidade São Francisco. Tese de Mestrado. Não publicado. 1998.
______ . (org.). Educação para a Paz e Tolerância: Fundamentos Teóricos e Prática Educacional. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. Organização e notas de Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
JARES, Xésus. Educação para a paz: sua teoria e sua prática. Porto Alegre: Artmed, 2002.
PIAGET, Jean. É possível uma Educação para a paz? In PARRAT, Silvia e TRYPHON, Anastasia. Sobre a Pedagogia: Textos inéditos. Trad. de Claudia Berliner. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
SÁEZ, Pedro. Propostas para uma Pedagogia da paz. Disponível em <www.artmed.com.br/patioonline/fr_conteudo.php?codigo=338&secao=54&pai=53>, acessado em 15 de dezembro de 2004.
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Título: Os Jogos Cooperativos e a mediação de conflitos escolares: as possibilidades de ação dentro do contexto educacional
Autor: Willian Batista dos Santos
Telefone para contato: 3278-4722/ 8593-6581
Endereço eletrônico: williambsantos@hotmail.com
Formação Acadêmica: Graduado em educação física pela Universidade Federal de Goiás; Especialista em Atividade Física, Saúde e Educação (pela mesma Instituição de Ensino Superior) e Especialista em Educação Infantil pela Faculdade Ávila. Atualmente desenvolve pesquisas na área de formação continuada de professores de educação física e no campo de jogos populares, com ênfase no estudo dos jogos cooperativos e sua relação com a educação formal.
 
Os Jogos Cooperativos e a mediação de conflitos escolares: as possibilidades de ação dentro do contexto educacional
Resumo: Este estudo tem como pressuposto a importância dos Jogos Cooperativos como alternativa pedagógica na mediação e resolução pacífica dos conflitos que emergem no cotidiano escolar. Tal abordagem é baseada nos preceitos de uma Educação para a Paz, aliada a um processo contínuo e permanente de conscientização dos estudantes, amparado em uma concepção crítica da paz e do tratamento criativo do conflito, com vistas a contribuir com o desenvolvimento de um novo tipo de cultura, a Cultura de Paz.
Palavras-chave: Cultura de paz, educação para paz, conflitos, jogos cooperativos
Introdução
 
Em meio ao crescente debate conceitual e metodológico que as instituições educacionais vêm estabelecendo com a Cultura de Paz e as formas de mediação de conflitos dentro do contexto escolar, surge a necessidade de estabelecer um diálogo com a realidade, em busca de novas alternativas e experiências pedagógicas capazes de contribuir com as discussões em questão.
Dessa forma, procuraremos apresentar os Jogos Cooperativos, ao longo desse artigo, como um importante instrumento de mediação e resolução pacífica dos conflitos que emergem no cotidiano escolar.
Situando o conflito dentro na questão
Hoje em dia, o conflito é interpretado como um fato negativo, visto como uma realidade não desejável, como algo que deve ser evitado de qualquer forma. Isso se deve a concepção tradicional da paz, que a define como um estado de quietude caracterizado pela ausência de conflitos (CALLADO, 2004).
A partir de uma concepção crítica de paz, baseada na superação das contradições históricas ocasionadas pelo sistema capitalista – principal gerador de violência e conflitos –, e amparados em um processo dinâmico, orientado para discutir e traçar novos caminhos em busca de condições que nos permitam alcançar as circunstâncias desejadas, verificamos a possibilidade de novas perspectivas para entender os conflitos e também confrontá-los.
Baseado na concepção crítica de paz, o conflito deixa de ser evitado, para definir-se como um fato consubstancial às relações humanas, sendo necessário para compreendermos as ambigüidades existentes no meio social e suas manifestações em âmbito pessoal e interpessoal.
Dessa forma, o conflito deixa de ser considerado como um elemento negativo em si mesmo, de modo que seu caráter, positivo ou negativo, virá determinado pela forma de regulá-lo e pela possibilidade de beneficiar a todas as partes implicadas (CALLADO, 2004).
Dentro desse contexto, entendemos que a compreensão e a busca de soluções para os conflitos identificados na realidade social, podem ser potencializados pelas instituições educativas formais (Escola), por meio de um processo educativo, dinâmico, contínuo e permanente, que possibilitem aos estudantes identificar os fatores geradores de conflitos em seu cotidiano escolar e familiar, bem como os agravantes sociais responsáveis pelos diversos tipos de violência estrutural, traduzidos pelas desigualdades sociais presentes em nosso planeta.
A implementação de um processo educativo que não nega o conhecimento ao estudante e o coloca diante das diversas questões geradoras de conflito, por meio de discussões e debates significativos e da aplicação de enfoques sócio-afetivos e problematizadores, pretende desenvolver um novo tipo de cultura, a Cultura da Paz, que ajude as pessoas a desvendar criticamente a realidade, para poderem situar-se diante dela e, em conseqüência, nela tomar parte” (JARES, apud CALLADO, 2004, p. 32)
Assim os processos educativos formais direcionados a construção de uma Cultura da Paz, segundo Callado (2004, p. 31-32)
(...) implica uma postura ativa diante de determinados fatos comuns a nossa sociedade, que habitualmente funciona de forma violenta. É, portanto, o contrário da passividade. A passividade supõe uma forma de reprodução do modelo social imperativo, pois, como já vimos, para entendermos a paz como um processo contínuo, é necessária uma participação ativa tendente a modificar determinadas propostas sociais e a evitar, consequentemente, a perpetuação do modelo existente, substituindo-o por outro em que haja condições necessárias para erradicar as atitudes violentas, com o emprego da igualdade e a justiça social”.
Segundo Gernika Gogoratuz, (1995), Rodríguez (1995), Velázquez e Fernández (2002) (apud Callado, 2004, p. 40), uma Escola que visa implementar a Educação para a Paz deve fomentar os seguintes aspectos:
  1. O uso do diálogo.
  2. O aprendizado cooperativo.
  3. O desenvolvimento da afirmação da personalidade.
  4. O estabelecimento das normas reguladoras da escola num padrão de democracia participativa e igualitária.
  5. O desenvolvimento da empatia.
  6. A idéia de que a violência é evitável.
  7. A regulação pacífica dos conflitos. 
Além disso, Callado (2004), afirma que o planejamento e a intencionalidade no ato educativo são fundamentais para dar início ao processo de construção de projetos vinculados a Educação para a paz dentro das escolas. Diante disso, é necessário:
  1. Estabelecer, de forma consensual, o conteúdo concreto do que se entende por Educação para a Paz, seu significado e implicâncias educativas, e delimitar os aspectos da mesma que se irá trabalhar;
  2. Delimitar os objetivos e os conteúdos para cada etapa;
  3. Determinar o perfil ou modelo de professor de acordo com a Educação para a Paz, o que nos deve obrigar a uma reflexão constante sobre o nosso papel na instituição educacional e na sociedade;
  4. Estabelecer os critérios metodológicos gerais;
  5. Concretizar as atividades educacionais comuns a todo o centro educacional;
  6. Especificar os critérios gerais de avaliação e o sentido de sua orientação;
  7. Designar os materiais e recursos necessários para poder levar à prática este tema transversal;
  8. Avaliar e descrever as necessidades organizacionais, tanto na aula como no centro educacional, necessárias para abordar a Educação para a Paz. 
Assim, podemos afirmar que ao desenvolvermos nosso trabalho no cotidiano escolar, baseado nos preceitos de uma Educação para a Paz, que constitui um processo de conscientização contínua e permanente dos estudantes e da comunidade escolar de modo geral, partindo da concepção crítica da paz e do tratamento criativo do conflito, tende a contribuir com o desenvolvimento de um novo tipo de cultura, a Cultura da Paz.
E é dentro dessa perspectiva que observaremos os Jogos Cooperativos de agora em diante, ou seja, como uma fonte rica para o desenvolvimento de novas reflexões e ações direcionadas a resolução dos conflitos e implementação da Cultura de Paz dentro das escolas.
Os jogos cooperativos e a mediação de conflitos escolares
           É evidente no contexto atual a perda de valores essenciais para a vida em sociedade à medida que há o crescimento da miséria, da exclusão, da violência, do individualismo, da competitividade e da exploração do homem pelo homem. Em virtude disso, muitas pessoas estão convencidas de que essa é a natureza humana. Mas, se acreditamos que essa é a verdadeira natureza do homem e esperarmos dele esse comportamento, então sem dúvida o teremos. Todavia, em meio a todo esse negativismo, há vislumbres do que o homem tem sido e do que ele pode ser (ORLICK, 1989)
Segundo Orlick (1989), a destrutividade e a crueldade em larga escala passaram a existir com o aumento da produtividade, a divisão do trabalho e a criação dos Estados com suas hierarquias e elites. Entretanto, esse autor também aponta que mesmo diante de um quadro tão caótico e desolador “(...) O homem mostra sua capacidade de ser uma criatura afetuosa, amorosa e compassiva, apesar de ter sido criado em uma cultura altamente industrializada e competitiva (...)” (1989, p. 10).
Ainda, de acordo com Orlick (1989), os seres humanos possuem a capacidade de assumir tanto um comportamento competitivo como cooperativo. No entanto, os comportamentos que farão parte do seu repertório dependerão em larga escala do aprendizado social decorrente dos valores presentes nos processos educativos e formativos aos quais forem submetidos.
Diante disso, acreditamos que cabe a Escola dar sua parcela de contribuição na formação de seres humanos sensíveis e comprometidos com as mudanças coletivas. Para a efetivação de tal tarefa, consideramos ser necessária a adoção de práticas educativas lúdicas e significativas, direcionadas ao resgate e formação de valores relacionados à solidariedade, cooperação, inclusão, respeito às diferenças e valorização da paz.
Sabemos que os jogos além de serem contagiantes e atrativos são evidenciados como um dos processos mais ricos para se atingir a educação, pois através deles existe a oportunidade para desenvolvimento do relacionamento humano, das responsabilidades coletivas, da criatividade (FRIEDMANN, 1996) e da promoção de reflexões mais amplas, a cerca da forma de organização social em que vivemos (segregacionista, excludente, individualista e competitiva).
Mas, diante das potencialidades educativas que podemos desenvolver com o auxílio dos jogos, também temos o dever de refletir sobre algumas questões importantes que o envolve, apresentadas por Brotto (1999, p. 25-26): “O jogo educa para quê? Qual a visão de mundo e humanidade e que valores estão por trás dos jogos que jogamos e, especialmente, daqueles que propomos para crianças, jovens e adultos jogar? Que Habilidades Humanas estão sendo sensibilizadas e potencializadas através dos jogos? Temos oferecido aos nossos estudantes alternativas para jogar com autonomia e cooperação?”
Diante de tais questões verificamos que o jogo não representa apenas o vivido, também prepara o devir (FREIRE, 1989).
Assim, a experiência de jogar é sempre uma oportunidade aberta, não determinada, para um aprender relativo. Dependendo dos princípios, valores, crenças e estruturas que estão por trás dessa "minissociedade-jogo", podemos tanto aprender a sermos solidários e cuidar da integridade uns dos outros, como, ao contrário, podemos aprender que jogando podemos ser mais importantes que alguém, e se importar muito pouco, com o bem-estar dele (Orlick, 1989, p. 107).
Se os padrões das brincadeiras preparam as crianças para os seus papéis como adultos, então será melhor nos certificarmos de que os papéis para os quais elas estão sendo preparadas sejam desejáveis.
Na declaração de Tenzin Gyatso - o XIV Dalai Lama, (apud BROTO, 1999, p. 51-52), ele afirmou:
Creio que para enfrentar o desafio de nossos tempos, os seres humanos terão que desenvolver um maior sentido de responsabilidade universal. Cada um de nós terá de aprender a trabalhar não apenas para si, sua família ou país, mas em benefício de toda a humanidade. A responsabilidade universal é a verdadeira chave para a sobrevivência humana.
Diante das novas responsabilidades e ações que devemos assumir e implementar para contribuir com a construção de um mundo mais igualitário e democrático, verificamos a intensa necessidade de conscientizar os estudantes sobre a importância do trabalho cooperativo, que tem como princípio básico o trabalho em grupo, cuja finalidade é alcançar/atingir um objetivo comum, de modo que todos sejam beneficiados de forma igual com seu produto final, seja ele material ou imaterial.
Os Jogos Cooperativos nascem justamente como forma de atender as novas demandas sociais, vinculadas ao combate à excessiva valorização dada ao individualismo e à competição exacerbada, na sociedade moderna, mais especificamente, pela cultura ocidental (BROTTO, 1999). Foram criados com o objetivo de promover, através das brincadeiras e jogos, a auto-estima; a valorização do trabalho em grupo; o reconhecimento das diferenças (pessoais e de grupo); o desenvolvimento de habilidades e da criatividade; o combate a exclusão e ao preconceito; o valor da partilha e da construção de bens coletivos; a reflexão crítica sobre a competição e os danos que causa à sociedade de um modo geral.
Durante a vivência dos Jogos Cooperativos percebemos que os participantes envolvidos jogam uns com os outros, ao invés de uns contra os outros; jogam para superar desafios e não para derrotar os outros; jogam pelo prazer de jogar; jogam para atingir um objetivo comum e não para fins mutuamente exclusivos; jogam para libertarem-se da competição, da eliminação, da agressão física; jogam para que ocorra um aumento da comunicação, da empatia e do potencial criador humano; jogam para diminuir a pressão para competir e exterminar a necessidade de comportamentos destrutivos; jogam para promover a interação e a participação de todos, e deixar aflorar a espontaneidade e a alegria de jogar. (BROTTO, 1999; BROWN, 1994; CORREIA, 2006; ORLICK, 1989; SOLER, 2005, 2009).
Diante de tantos argumentos e fatos, observamos que os Jogos Cooperativos assumem grande importância dentro dos processos educativos que almejam implementar uma Educação para a Paz, que visa tratar o conflito em suas múltiplas dimensões, não como algo indesejável, mas, como algo inerente as próprias relações interpessoais e as contradições existentes em nossa sociedade.
Considerações finais
           Educar para a paz é uma necessidade eminente. Trabalhar com o objetivo de formar seres humanos sensíveis, solidários, cooperativos, justos, confiantes, criativos, reflexivos e participantes também é responsabilidade da Escola e dos profissionais que atuam na educação.
Dessa forma, acreditamos que os Jogos Cooperativos constituem uma alternativa inovadora para o processo educativo vinculado à Educação para a Paz e na mediação pacífica e crítica dos conflitos que emergem no cotidiano escolar, ao promover a ética da cooperação e auxiliar a melhoria da qualidade de vida para todos, sem exceção. Por ser uma possibilidade de transformação e construção de relações mais humanas, justas e igualitárias, já que contribuem no processo de ensino e aprendizagem, por favorecerem a inclusão e combater a lógica do fracasso. Além de possibilitar o desenvolvimento da auto-estima, despertando e desenvolvendo talentos, habilidades pessoais e a criatividade como peças singulares, importantes e fundamentais para o relacionamento respeitoso e harmonioso com o outro e com o grupo ao qual pertencemos.
Referências Bibliográficas
BROTO; Fábio Otuzi. Jogos cooperativos: o jogo e o esporte como um exercício de convivência. Dissertação de (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física, 1999. 
BROWN, Guillermo. Jogos cooperativos: teoria e prática. São Paulo: Sinodal, 1994. 
CALLADO, Carlos Velázquez. Educação para a paz: promovendo valores humanos na escola através da Educação Física e dos Jogos Cooperativos. Santos: Projeto Cooperação, 2004.
CORREIA, Marcos Miranda. Trabalhando com jogos cooperativos: em busca de novos paradigmas na educação física. 2 ed. Campinas, SP: Papirus, 2006.
FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física. Editora Scipione Ltda., SP: 1989, 224 p.
 
FRIEDMANN, Adriana. Brincar: crescer e aprender o resgate do jogo infantil. São Paulo: Moderna, 1996.
 
ORLICK, Terry. Vencendo a competição. São Paulo Círculo do Livro, 1989.
 
SOLER, Reinaldo. Brincando e Aprendendo com os Jogos Cooperativos. Rio de Janeiro: Editora SPRINT, 2005.
 
__________. 210 novos jogos cooperativos para todas as idades. Rio de Janeiro: Sprint, 2009.
 
 

3 comentários:

  1. Perfeito este seminário!!! Muito bom recarregar energias para lutar pela paz na escola e perceber que não estamos sozinhos nessa caminhada!! Sou professora da Escola Francisco Matias, no Pq. AnhangueraI e lá já estamos nessa luta há algum tempo e posdemos dizer que não é fácil mas não desistiremos jamais!! contamos com este apoio importante, no sentido de nos dar suporte para ampliar nosso projeto. Se puderem sugerir ou disponibilizar palestrantes que possam abordar os assuntos: drogas; violência; abuso sexual;e a própria "paz" com as crianças, seria ótimo! Podemos agendar... abraços Prof.ª Ana Lúcia
    Visitem meu blog, será um prazer !
    wwwideiasdalu.blogspot.com

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  2. Impossível dizer como foi importante o Seminário para nós, profissionais da Educação engajadas na construção de Pontes para a Paz, agradeço a todos os Organizadores do Evento na pessoa da nossa Mestra Genivalda....MUITO OBRIGADA!

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  3. "A paz invadiu o meu coração.De repente, me encheu de paz..." esse trecho da música de Gilberto Gil traduz bem como eu me senti participando do I Seminário de Educação da Paz. Foi maravilhoso. Amanhã estarei na reunião de planejamento da escola que trabalho (Professor Aristoclides Teixeira) falando tudo sobre o que eu vi e aprendi neste Seminário. Obrigada pela oportunidade. Parabéns para todos. Jacqueline (Profa. de Arte).

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